quinta-feira, 4 de agosto de 2011

... Viver no Limite




Figura

O grande cineasta soviético recentemente falecido deu em Fevereiro do ano passado, no Porto, a entrevista exclusiva que agora publicamos.
Disse, então,

SERGUEI PARADJANOV :

«Importa dar prazer às pessoas»


Maria de Loudes Gândara

Era considerado o maior realizador vivo da União Soviética. Recebeu os últimos aplausos do público no último Fantasporto, do qual foi convidado de honra e cujo programa integrou uma respectiva da sua obra, até aí vagamente conhecida em Portugal, que inclui todas as longas-metragens. Chegou convalescente da ablação de um pulmão e teve de ser hospitalizado de urgência. Deu entrevistas, compareceu a encontros, gozou os prazeres da boa mesa. Cineasta-poeta-artista plástico-músico por vocação, rebelde por convicção, sofreu perseguições, calúnias, humilhações, que culminaram em oito anos de cárcere e 15 de silêncio forçado. Quando soou a hora de depor as armas estava exausto. Serguei Paradjanov, ou antes Sarkis Paradjanian, morreu a 21 de Julho sem terminar a  «Confissão».

«O meu livro mais importante é o próximo », afirmou à jornalista com a qual acedera falar « apenas uns minutos », pouco antes  de comparecer na sessão de encerramento   do festival. « ”Confissão” é a minha história desde criança, começa com o meu nascimento e acaba com a minha morte. Vou retomar as filmagens daqui a dois meses ». Corria o mês de Fevereiro.

Falava baixo, dava respostas curtas. Nessa noite estava « muito, muito cansado ». dera «tantas entrevistas…», dissera no seu francês fluente a sra. Bartashvili, uma georgiana, velha amiga de infância (princesa, disseram) que o acompanhava.

Ainda sentado à mesa do restaurante do hotel, depois das reticências em prestar mais declarações aos profissionais da Imprensa, exigiu que fosse servido algo à que se sentara à sua mesa. Aceitar era uma ordem. Os poucos minutos concedidos passaram-se numa conversa entrecortada por silêncios, com a interlocutora a bebericar de um café com leite, receosa de que o tempo escorresse com o cineasta a responder com um «isso não interessa», como já fizera, e sentindo-se culpada por esforçar esse homem doente, que a fitava com olhos de leão velho à beira da morte.

O primeiro encontro, no aeroporto da Portela, fora traumatizante.

Esperava o homem de 66 anos, de ar rijo e seguro de si, de quem os grandes jornais europeus reproduziam, desde há dois anos, declarações polémicas, e publicavam fotografias nos seus trajes exóticos; a figura de patriarca que atraíram as atenções em Paris, Munique e Veneza, que usava viajar carregado de lembranças para distribuir pelos amigos espalhados por todo o mundo. Mas na sua frente estava um homem enfiado numa gabardine preta abotoada até acima, com um cachecol da mesma cor a envolver-lhe o pescoço e um boné aos quadrados castanhos.

Em vez do atrevimento esperado, os olhos, fugidios, eram os de um homem acossado. Não podia falar. A viagem fatigara-o muito, explicaram. Chegara a sombra desse arménio que por costume não conseguia, nem pretendia, passar despercebido. Dele reconheciam-se apenas as bonitas barbas brancas. O seu volume estava reduzido a metade. Nessa altura recordava com alguma amargura a preocupação de Mário Dorminski em sentar Paradjanov nas frágeis cadeiras do Carlos Alberto. O homem do Fantasporto tinha pensado substituir duas cadeiras do auditório por uma poltrona que levaria de casa. Pena, pelo cineasta, que tão insólita ocorrência não se verificasse.

Com um ar ausente, de quem não sabia, em absoluto, onde estava, perguntara se no Porto, para onde iria seguir de avião, havia filmes de Fellini. Angustiante.

A conversa foi reatada. Parecia gostar de falar da sua nova obra.

Como era a infância contada em  «Confissão»? Feliz, rebelde? « Fui uma criança rebelde e fui feliz. Depois fiquei órfão, fui preso. A criança sofreu. Estive preso muitos anos. Foi terrível». Baixa os olhos, absorto.

É verdade que disse que gostaria que Fellini terminasse a «Confissão» se não pudesse fazê-lo? «Talvez tenha dito» Porquê Fellini? «Ele é o melhor realizador, para mim».


A COR DA MALDIÇÃO

Quem aprecia entre os realizadores soviéticos? Um grande silêncio. Depois « Muratova ».

E TarKovski ? « Sim, claro ». Mas disse que faltou a Tarkovski a experiência da prisão e dos percevejos. Que defeito lhe encontrava? « Snobismo ». Os olhos traduziam malícia e desafio.

Em que medida a falta de meios técnicos afectou o desenvolvimento da cinematografia na URSS? « Um bom realizador faz sempre bons filmes ».


Começou a sua carreira de cineasta nos estúdios de Kiev e aí trabalhou muitos anos com os melhores cineastas ucranianos. Que realizadores o influenciaram? «Nenhum».

Rejeitava as lições do seu mestre Igor Savtchenko e as influências  de Dovjenko que muitos vêem na sua «Sombra dos Antepassados Esquecidos» ou «Cavalos de Fogo», de 1965, a obra prima que o tornou conhecido internacionalmente.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

Diz-se que rejeita toda a sua obra anterior a «Cavalos de Fogo». Porquê? Paradjanov não percebeu a pergunta ou não estava simplesmente para explicações. Retorquiu: «”A Cor da Romã” é um filme muito importante» . E refugia-se no silêncio, perdido talvez nas recordações presas à obra que lançou sobre ele a maldição que perduraria um quarto de século.

«A Cor da Romã», com o título original «Sayat Nova», é dedicada ao poeta arménio nascido em Tbilissi, Arutine Saiadian, aliás Sayat Nova. Compõe-se de uma sequência de quadros alegóricos que evocam a preciosidade dos ícones e o onirismo surrealista, formando um poema de enorme espiritualidade e imaginação. Teve a primeira versão interdita. Com a ajuda de Yuketevitch, a quem pediu que o ajudasse a dar à película um aspecto «lógico e racional», Paradjanov fez uma segunda versão que seria distribuída apenas na URSS em 1971.

Revelado por «Sayat Nova», o primeiro filme rodado fora dos estúdios de Kiev, em Everan, como «nacionalista e esteticista decadente», a assinatura de uma carta de protesto dos intelectuais ucranianos, contra os processos políticos intentados aos dissidentes, seria a gota de água que levaria os burocratas a votá-lo ao ostracismo durante 15 anos. Recusaram-lhe 23 roteiros. Acabaria por ser detido em 1974. Acusado de traficante de objectos de arte e homossexualidade, foi condenado a cinco anos de prisão. Seria liberto em 1977 mercê da intervenção de Lili Brick e de Louis Aragon. Em 1982 conheceria novamente a prisão por «especulação» e razões mais ou menos idênticas levá-lo-iam pela última vez à cadeia, em 1984. No entanto, data desse mesmo ano «A Lenda da Fortaleza de Suram», premiado em Tróia, a que se seguiu a curta-metragem «Arabescos sobre Pirosmani» em 1985 e «Achik Kerib»  em 1988.

«Sim é verdade que conheci as prisões no tempo de Estaline, de Brejnev e de Andropov», confirma o realizador que, sem apresentar justificações, queria apagar da memória da sua filmografia «Uma Flor sobre a Pedra», «Rapsódia Ucraniana», «O Primeiro Jovem», «Andriech» e as curtas-metragens  «Mãos de Ouro», «Dumka», «Conto Moldavo», «O Sinal do Tempo», um trabalho de sete minutos, único a interromper 15 anos de silêncio. Esquecia também «Frescos de Kiev» que fez soltar as primeiras fagulhas do descontentamento oficial. Interdito por «propaganda de uma concepção mística e subjectiva», todo o material filmado teve de ser deixado na Ucrânia.

« É terrível estar preso ». As palavras saem da boca do cineasta como um desabafo, reflexo de uma revolta que parece carregar como um fardo de que não consegue ver-se livre.

A hora não é propícia à entrevista. Serguei Paradjanov está cansado, não mostra vontade de falar. Já disse inúmeras vezes e nos mais diversos locais que não acredita em mudanças e tem «alergia» à perestroika. O último «ataque alérgico» sentira-o ainda em 1988. Fora vigiado em Munique por agentes soviéticos que contabilizavam o que recebia pelas entrevistas às grandes cadeias de televisão europeias e americanas  e pela venda das suas colagens a coleccionadores e, ao chegar ao aeroporto, em Moscovo, com 300 kg de excesso de bagagem , resultado de ofertas  e compras nos grandes armazéns, ser-lhe-iam infligidas quatro horas de interrogatórios e revista. Também não quer falar dos seus filmes nem dos realizadores soviéticos. Só por boa educação continua sentado dando respostas monossilábicas.

Depois, deve ainda comparecer na sessão de distribuição dos prémios. A jornalista avança com uma pergunta pueril, que por certo não o indisporá. Inesperadamente, obtém, uma chave do carácter daquele caucasiano orgulhoso que a glasnot nomeou «embaixador» no mundo do cinema e passeou a sua rebeldia pela Europa acusando Lenine e Ordjonidzé  de terem cometido «erros trágicos», o governo de não resolver o caso de Nagorno-Karabakh insurgindo-se contra a União dos Cineastas por não o deixar trabalhar e tratá-lo como a um palhaço que quer mostrar nos países capitalistas, declarando-se farto de todo esse «circo» mas mostrando-se totalmente à altura do cargo.


RAÍZES

Dar prendas parece uma coisa importante para si. Porquê? Paradjanov sorri pela primeira vez. « O que importa é dar prazer às pessoas »,

A entrevista estava encerrada mas a jornalista foi convidada a subir ao quarto, integrada no cortejo de que fazia parte o intérprete russo, a sra. Bartashvili e outra amiga georgiana que voara expressamente de França para se encontrar com Paradjanov em Portugal.

O seu quarto de hotel, no Porto, também nada tinha a ver com um outro, em Paris, descrito por um jornalista maravilhado. Nesse, dizia o cronista, as paredes desapareciam sob soberbas colagens da autoria de Paradjanov e os móveis assemelhavam-se a cornucópias donde brotavam belos objectos destinados aos amigos: um colar de prata para Françoise Sagan, uma veste de Arlequim confeccionada por Paradjanov em atenção a Fellini, xailes, lenços, toalhas bordadas, telas de pintores georgianos, várias lembranças destinadas a Yves Saint Laurent.

Antes de ser preso na armadilha mortal da doença, Paradjanov viajava transportando consigo, como embaixador do maravilhoso, o mundo mítico de que vivia rodeado na sua casa na velha Tbilissi. Fascinava os visitantes o emaranhado de grinaldas de flores e de fitas coloridas, as máscaras, os objectos em latão, numa amálgama de folclores de povos diversos em que pontuavam a Arménia, de onde veio a sua família, o da Geórgia, onde nasceu, e o do vizinho Azerbeidjão. Herdou do pai o gosto por coleccionar.

«Amar as suas próprias raízes será sempre algo de moderno» tinha afirmado numa entrevista sublinhando: «O moderno foi sempre perseguido como inimigo capitalista; por isso, a URSS vive um enorme atraso».

Paradjanov começa a arranjar-se. Despe o casaco de malha, trocando-o por uma lindíssima veste de veludo castanho bordado que lhe dá pelos joelhos. Abotoa-a vagarosamente. Penteia-se com cuidado. Ajeita a roupa. Os seus movimentos são de quem cumpre um ritual mil vezes repetido mas nem por isso menos sagrado. De uma mala retira um livro de capa vermelha que assina e oferece à visitante. É o argumento da sua «Confissão».

Dá um toque final no seu arranjo colocando duas camélias na lapela. Vê-se ao espelho. Compõe as flores. Está pronto e faz questão de se pôr a caminho, ainda que seja cedo e o percurso a fazer seja curto. Curiosamente, desaparecera dos seus olhos o cansaço.

Na rua dá o braço à jornalista e inicia uma marcha vigorosa. De vez em quando balbucia umas frases, talvez em arménio, em georgiano ou em russo. É possível que tenha falado do tempo, talvez tenha dito algo amável, ou tenha simplesmente lançado imprecações contra as valetas abertas ao longo do passeio, dispostas a engolir o desprevenido e que o obrigavam a atravessar tábuas estreitinhas.

No cinema Carlos Alberto esperou, nos bastidores, pela hora de entrar no palco. Receberia um prémio especial da organização da Fantasporto, e os calorosos aplausos do público. Assistiu sentado à entrega dos galardões, e não passa sem oferecer uma nota do seu humor. Endireita-se, faz peito. Oferece uma pose de homem importante. Cativa a assistência. O que conta é dar prazer às pessoas.

Serguei Paradjanov foi levado, em Julho, de Erevan para Paris a fim de receber tratamento hospitalar num avião especialmente fretado pelo governo francês.

Foi reconduzido alguns dias depois à capital da Arménia. Nessa cidade, nos finais de 1989, foi criado o Museu Paradjanov para abrigar os desenhos, colagens, telas e cerâmicas da autoria do cineasta que em Fevereiro último totalizavam o número de 1200.



Fonte:   Jornal de Letras, de 14 de Agosto de 1990.        

  





  
  

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