domingo, 16 de dezembro de 2012

Os Mortos



Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.

Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
a minha voz numerosa e rouca
de todos eles desprendendo-se de mim.

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?

E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.


Autor: Manuel António Pina
           in, Poesia, Saudade da Prosa, uma antologia pessoal


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Morreu O POETA ...



   No sentir da noite a luz perdeu cor  
   ... uma estrela se apagou!  
   no coração do POETA o sangue gelou.   



"Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça
que canta na tua garganta
canta onde lhe apeteça".

manuel antónio pina 



          Calou-se o pássaro!          









sábado, 1 de setembro de 2012



PARABÉNS


          AO

            EMÉRITO ESCRITOR

         

ANTÓNIO LOBO ANTUNES




POR ESTE SEU DIA DE LUZ ...

quarta-feira, 13 de junho de 2012

MEMÓRIA ...

«Memória é como um sonho virado ao contrário»  *





      Em 2005, um Grupo de Professores do Alto Minho, pediu a Álvaro Cunhal que imaginasse um Portugal de Abril para ser contado às crianças do pré-escolar.


     Assim, nasceu um conto infantil inédito, da autoria do líder histórico dos comunistas portugueses, que a VISÃO traz à luz do dia, com o contributo dos que idealizaram à época, o projecto.


OS BARRIGAS E OS MAGRIÇOS

Álvaro Cunhal


Esta história que vos vou contar passou-se há muitos anos, ainda nenhum de vocês tinha nascido.
Foi num país em que havia uns homens conhecidos como os Barrigas e outros conhecidos como os Magriços.
Os Barrigas não tinham este nome por serem todos barrigudos, mas por comerem tanto, tanto, tanto que nem se percebia onde cabia tanta coisa.
Houve até quem dissesse que para lá caber tanta comida o corpo dos Barrigas lá por dentro devia ser tudo estômago.
Os Magriços também não se chamavam assim porque tivessem todos nascido magrinhos. Mas porque, em certas épocas do ano, os Barrigas não lhes davam trabalho, nada lhes pagavam, e passavam tanta fome. E então, sim, ficavam tão magrinhos, só pele e osso, magrinhos como carapaus secos.
Os Barrigas tinham muitos campos, muitas terras, tão grandes, tão grandes, que de uma ponta nem com binóculo se via a outra ponta.
Os Barrigas tinham também moinhos para moer farinha, lagares para moer a azeitona e fabricar azeite.
Nesses campos, nesses moinhos, nesses lagares, trabalhavam os Magriços. Mas recebiam tão pouco, tão pouco, que não lhes dava para comerem eles, suas mulheres e seus filhos.
E, ainda por cima, eram mesmo maltratados, como se fossem bichos.
Uma vez, um Magriço pediu ao Barriga seu patrão que lhe pagasse mais pelo seu trabalho. E sabeis vocês o que lhe respondeu o Barriga? O Barriga riu-se e respondeu: «Se não tens pão, come palha.» Isto não se diz a ninguém. São palavras feias de um homem mau, não vos parece?

Outra vez, um outro Magriço que trabalhava num lagar procurou o Barriga e disse-lhe «Senhor Barriga, eu fabrico cântaros e cântaros de azeite, mas o senhor fica com todo e eu não tenho nenhum azeite para temperar as batatas». E o Barriga deu-lhe uma resposta tão feia, tão feia, que nem sei se aqui a diga. Mas sempre a digo. O Barriga respondeu: «Se não tens azeite para temperar as batatas faz-lhe xixi por cima.»
Disse isto com palavras ainda piores, mas foi isto que disse.
São também palavras feias de um homem mau, não vos parece?
Isto eram, porém, palavras feias de homens maus, mas as coisas eram ainda piores. Porque os Barrigas tinham ao seu serviço soldados armados e quando os Magriços protestavam - um, por exemplo, disse ao Barriga: «O senhor é um homem mau» - eles diziam aos soldados para prender os Magriços, meterem-nos presos nuns buracos a que chamavam prisões. Isto e ainda pior.

Que fazer? Se algum de vocês fosse um Magriço, o que fazia? Foi um Magriço que se lembrou. Tinha um amigo que era soldado e disse-lhe assim: «Olha lá, amigo, achas bem isto? O que os Barrigas te mandam fazer?» O soldado era bom rapaz e disse: «Eu estou de acordo contigo. Mas que posso eu fazer?»
Lembrou-se então de falar com os outros soldados e todos pensaram que era preciso ajudar os Magriços a libertar-se de tal situação
Foi então que os Magriços se juntaram todos, procuraram o mais barrigudo dos Barrigas e lhes disseram:
«Isto não pode continuar assim. O senhor tem tanta terra, que muita está abandonada. Nós vamos trabalhar para lá, cultivá-la e o que produzirmos é para nós.»
O Barriga nem queria acreditar. Começou logo a gritar: «Estais malucos ou quê? Se se atreverem a isso, varro-vos a todos a tiro!»
Mas os Magriços não tiveram medo, foram para essas terras abandonadas, começaram a limpá-la de mato para depois cavarem e semearem.
Os Barrigas protestaram. chamaram nomes aos Magriços, ameaçaram de os mandar matar. Mas o pessoal não se assustou.
O mesmo sucedeu por toda a parte e os Magriços, com o seu trabalho, desenvolveram rapidamente a agricultura.
Asseguraram trabalho a todos que dantes passavam metade do ano sem trabalho e sem pão e ganharam para que ficasse a juventude que fugia.
Semearam  terras que estavam abandonadas. Produziram e venderam trigo, tomate, compraram vacas e ovelhas e assim produziram leite e queijo. Arranjaram máquinas agrícolas.
O que fizeram os Barrigas? Chamaram os soldados e deram ordem: «Vão lá e corram esses gajos a tiro!»
Os soldados foram, lá isso é verdade. Mas não deram tiro nenhum e até deram os parabéns aos Magriços pelo trabalho que estavam a fazer.
E o mesmo se passou nos moinhos e lagares de azeite.
Os Magriços tomaram conta de uns e de outros e quando apareceram os Barrigas a protestar, eles disseram: «Não lhe queremos mal, senhor Barriga. O senhor leva a farinha e o azeite de que precisa para a sua familia. E nós levamos o resto para as nossas.»
E o mesmo se passou nas fábricas dos Barrigas e em toda a parte.
Passou-se tudo isto na Primavera. Calhou começar no dia 25 do mês de Abril. Por isso, quando se fala no 25 de Abril é dessa revolta dos Magriços e do que foram capazes de realizar que se fala.

E para acabar a história, quero fazer-vos uma pergunta.
A mim, já me têm perguntado: «Ouve lá, se tivesses vivido nessa época, com quem estarias tu? Com os Barrigas ou com os Magriços?» E eu respondo: com os Magriços, claro!
E penso que conhecendo vocês esta história, dariam a mesma resposta.

7 de Junho 2000.

Fonte: VISÃO, 10 de Novembro 2005.


No dia 13 de Junho de 2012, data do 7º ano do Seu falecimento, aqui fica a minha modesta homenagem.


* frase de uma personagem do romance de BAPTISTA-BASTOS - viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura - 1ª edição: Maio de 2008 da Oficina do Livro.

terça-feira, 1 de maio de 2012

1º de Maio de 2012



Era assim o  1º de Maio de 1974.











Tal como no livro do Nosso Cientista António Damásio  -

"O Sentimento de Si"
                                  



quarta-feira, 25 de abril de 2012

HOMENAGEM




AO HOMEM QUE SEMPRE SOUBE SER LIVRE, RESPEITANDO A LIBERDADE  DO OUTRO.




Em, 25 de Abril de 2012.


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Onde está Abril - II



 Nação valente e imortal

     
     

      Agora sol a rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compra: não está assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, sendo ministros deram o litro pelo País e só por orgulho não estenderam a mão à caridade. O senho Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.

      Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
     
      Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima.
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo
que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cararacá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente,  indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!  Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.


      Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido nas proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o Senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraiso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.


      Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirugiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proibam~se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. o senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e ex-ministros a tomarem conta disto. 


      Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dipararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os procesos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever, E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.



Fonte:  VISÃO nº 996 de 5 de Abril de 2012.
               Crónica de Opinião do exímio Escritor António Lobo Antunes.












                                                        










domingo, 8 de abril de 2012

Onde está ABRIL - I

Opinião do Emérito Escritor Baptista-Bastos



 

A servidão e a dignidade

 

      Vivemos no interior do medo. O medo deixou de ser um sentimento comum à condição para se transformar numa ideologia e numa arma política. A Inquisição e Salazar deixaram discípulos. Não conseguimos libertar-nos dessa fatalidade histórica porque há quem limite as nossas forças e liquide as nossas esperanças. Por outro lado, aceitamos este fardo como um anátema. Reagimos escassamente mas não continuamos as acções contra a afronta. Ver os noticiários das televisões, ler a Imprensa tornou-se um exercício penoso, que conduz à depressão. Parece que o mundo desabou sobre os pobres portugueses. Tudo se enleia para favorecer o nosso infortúnio. Em nada acreditamos: a falsidade, a omissão, a desvergonha atingiram níveis desusados, e ninguém descortina onde está a mentira, e onde se oculta a verdade do que nos dizem.

 

      As informações são um caudal contraditório; e há declarações tão surpreendentes quanto imponderáveis. Mohamed El-Erian, um desses senhores do mundo, que poucos saberiam quem é, assevera  que Portugal vai pedir mais dinheiro e segue cabisbaixo, o caminho da Grécia. Erian, leio no Diário Notícias, é o presidente do maior fundo de investimento mundial e não costuma utilizar a metáfora nem o epigrama para falar das coisas. Papandreu, grego, socialista, primeiro-ministro até há bem pouco tempo, também não faz reserva em dizer que está aberta vereda para seguirmos o passado do seu país.

 

      O papão, o medo viscoso, ondulante, assustador é a Grécia. A Grécia, tal Asmodeu, rei dos demónios, é o crepúsculo como alegoria de todas as tragédias. Afastamo-nos, repugnados e receosos do contágio. Temos tudo a ver com a Grécia, mas nada queremos ter a ver com a Grécia. Os gregos são a doença infecciosa, larvar, perigosíssima. Passos Coelho, quando regressa de viagens, proclama logo, pensativo, austero e formal: com a Grécia, nem tomar café. Julgando, talvez, que esta frase corresponde a um optimismo criador.

 

      Vivemos num confuso e absurdo almofariz de dubiedades. Agora, para rematar estes clássicos do assombro, surge Vítor Gaspar, campeão do humorismo involuntário, e assegurar, arfante: "No dia 23 de Setembro de 2013 regressaremos aos mercados." Vinha dos Estados Unidos. E tudo indicava que lhe tinham segredado a extraordinária novidade. Ninguém sabe, nem Gaspar esclarece o mistério de tão prodigioso milagre.

 

      O português comum, que vive asfixiado entre o desemprego, o fisco, a multa, a humilhação, o vexame, a fome, a doença, a miséria, os impostos, as taxas moderadoras, a demolição do amor, o divórcio, a emigração, e outra vez a fome, a doença, a miséria, os impostos, esse português desorientado, desgraçado e triste sem remissão - que pode fazer ele?, que pode? Em cada um de nós reside a resposta sobre o compromisso com a honra e a recusa da servidão e da indignidade.

 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

 

Fonte :  Diário de Notícias de 21 de Março de 2012.   

terça-feira, 27 de março de 2012

Dia Mundial do Teatro



Neste dia, quero recordar dois vultos maiores do Teatro em Portugal, infelizmente já desaparecidos, e que acompanhei ao longo das suas Vidas.
São eles:












Mário Barradas




  Dizia Ele àcerca do teatro,  no ano da sua morte, numa entrevista à revista Cena's,  quando  lhe perguntaram ... qual é o papel de um Teatro Nacional?

 "É a preservação da memória e da identidade cultural de um país. No entanto, também é verdade que eu tenho um grande diferendo com o teatro português. Deve ser culpa minha, mas acho que lhe falta alma, uma dinâmica própria, a força que faz os grandes autores. Coisa que não temos. Houve alguns, como o Raúl Brandão ou o José Régio,  que podiam ter sido grandes dramaturgos... Escreveram duas ou três peças, o resto é romance ou poesia. Ora, o teatro é completamente ciumento. É a mais ciumenta das artes, porque não deixa espaço para mais nada."  








quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia


Neste Dia quero manifestar neste  cantinho, homenagem a dois grandes vultos da Arte Poética Portuguesa - um falecido aos quarenta e oito anos, recordá-Lo-emos como um editor extraordinário em mais de duas décadas da Assírio & Alvim, que nos deu a conhecer a poesia como ponte entre os vários povos e os tempos de sempre, ou seja o mundo num livro, editando em 2001 - ROSA DO MUNDO - 2001 poemas para o futuro. Estou a falar, de Manuel Hermínio Monteiro, a  quem o Prémio Camões de 2011 dedicou este Poema:
                   

Sétimo Dia


Voltámos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.

A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguêmo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.

Ainda ontem estávamos sózinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez .
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.


Manuel António Pina, em 25.06.01










Fonte :- MILFOLHAS, 30 de Junho 2001 PÚBLICO






O outro grande Senhor é Rómulo de Carvalho/António Gedeão - O Professor-Poeta (nasceu a 24 de Novembro de 1906 e faleceu a 19 de Fevereiro de 1997), transcrevo um texto do livro das suas memórias pessoais, que iniciou aos 80 anos e terminou pouco antes do falecimento.

O manuscrito foi encontrado no seu espólio  pela viúva, também escritora,  Natália Nunes que nem sabia da sua existência. Escolho este texto porque o acho pertinente. 





"... JOVENS DE ONTEM, JOVENS DE HOJE


Os meus saudosos amigos. Havia entre nós a máxima intimidade, a máxima confiança e, contudo, dir-se-ia que éramos cerimoniosos uns com os outros. Tínhamos atenções mútuas, delicadezas de trato, e até rodeávamos de palavras cautelosas certas conversas próprias de rapazes acicatados pelos impulsos eróticos. A culpa era toda minha porque os escolhi à minha imagem e semelhança e neles procurei os meus virtuosos defeitos. Contudo tenho a impressão de que a relação entre todos, amigos e não amigos, seguia código semelhante.

Hoje, nesse aspecto, tudo se aviltou, querendo com isto dizer que a relação entre as pessoas, jovens ou não, se degradaram, isto é, baixaram de grau, seguindo determinada escala de valores em que cada valor tem o seu grau. Estou a querer fugir à inutilidade de afirmar que o passado era melhor. Era diferente, e reporto-me à escala de valores desse passado quando o comparo com o presente.

A simples apresentação exterior de um jovem já o dispõe a um comportamento cívico diferente do do meu tempo. O capitalismo americano inundou o mundo de calças e blusões de ganga, tecido que, no meu tempo, era do mais baixo preço e só usado por miseráveis. Até era muito cantado o Fado de Ganga, faduncho que ia à cena num teatro de revista e cuja personagem que o cantava fazia o papel de carroceiro, homem que lidava com carroças e com burros que as puxavam. Para o capitalismo americano, agressivo, insolente e implacável, a ganga dos trajes ainda não bastou para atrair suficientemente os compradores potenciais que constituem o universo dos jovens. Quiseram dar-lhe um ar mais degradado, mais reles. E então apareceram no mercado as calças e os blusões de ganga já com nódoas, com manchas que simularam o uso, e delidos nas costuras. Foi um êxito. Aquilo, vestido dava o ar de pessoa vadia, que tinha passado a noite estendida num degrau de uma escada, que andava a comer sopa numa lata, que era um boémio, um sonhador, um ser independente que não tinha que dar satisfações a ninguém. A isto acrescentavam o calçado que, normalmente, já não é de cabedal, nem de pano, que nunca se limpa nem se lava, e dá um ar desleixado que é tentador. As raparigas seguiram o mesmo modelo. Para estar de acordo com o traje a linguagem usada pelos jovens tem de ser desbragada, porque sempre houve uma linguagem para cada traje. Digo o que se passa, mas não o que está bem ou o que está mal. Nós não éramos desleixados na nossa apresentação. Saíamos de casa muito escovadinhos, as nossas mães vigiavam a nossa limpeza, mandavam-nos engraxar os sapatos e puxar-lhes brilho. Por isso tínhamos outra maneira de falar, de gesticular, de nos aproximarmos dos outros e dos acolhermos. Todas as coisas estão relacionadas entre si. Estas e outras. Se um sujeito de casaca e sapatos de polimento encontrava algum conhecido na rua, tirava o chapéu, dobrava-se pela cintura e informava-se da saúde de Vossa Excelência. Se era um senhor de fato completo e gravata, desbarretava-se com moderação, baixava a cabeça e perguntava à pessoa sua conhecida como tinha passado. Se era um gajo de «blue jeans» (nome dado às calças de ganga americanas), voltava a cabeça e mandava-nos bugiar. Tudo sem as suas regras, até a falta delas."

Como Poeta, transcrevo um Poema de 1961, que se encontra publicado no seu livro Máquina de Fogo e que se intitula : 


  Poema do autocarro 



  Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro 
  e sem lhes perguntar porque maltratam. 
  Eu sei porque é que morro.   
  Eles é que não sabem porque matam. 

  Eles são pedras roladas no caos,  
  são ecos longíquos num búzio de sons. 
  Os homens nascem maus. 
  Nós é que havemos de fazê-los bons. 

  Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro, 
  um rosto onde possa descansar os olhos olhando,  
  um rosto como um gesto suspenso 
  que me estivesse esperando. 









Fonte  : JL, Jornal de Letras, Artes e Letras de 22 de Novembro de 2006 no
Centenário do Professor.
                        




   

domingo, 11 de março de 2012

Crónica




... COM JOSÉ CARDOSO PIRES



     Pois é, meu velho, foste sem me dizer nada. Ficaste para aí a dormir ...              sempre a dormir... até chegar ao sítio onde jamais se acorda. Nunca mais disseste: - Então meu rapaz! Trazias, quase sempre, os olhos cheios de mar e, muitas vezes, secaste os meus nas tuas palavras quando eles estavam cheios de lágrimas. Por acaso não viste, por aí, a barca do Gil? Não sei se ela ainda está em condições de navegar.

     Há barcas que são eternas. A barca do Gil eternizou-se nas palavras; no outro lado das margens do tempo; na denúncia do mal para transportar o bem; nas últimas velas de navegar pelo céu.

     Pois é, José amigo: - Esta noite sonhei que Mestre Gil te tinha dado uma barca. Uma daquelas que Deus lhe dera outrora para levar as almas. Há muito que as barcas chegavam da Terra quase vazias; as dos adultos... que para os inocentes, elas não chegavam. As dos inocentes tinham asas; não precisavam de velas; erguiam-se no ar pelas correntes quentes, até aos pés de Deus. Depois, com a barca que te dera Gil Vicente, vieste à Terra muitas vezes... Duma delas disseste-me: - Não queres vir?

     Acordei precisamente quando ia a entrar na barca. - Não querias mais nada, perguntei-me! E ali fiquei pensando... ali, no sofá de molas partidas onde as viagens dormitam e saltam para a escrita, com as letras a ferverem do lado de cá do sonho; aquele lado que já todos conhecem; o único com possibilidade de descrever o outro, o lado das profundezas, o lugar  do regresso a Gil Vicente onde os amigos se vão perdendo pelas cinzas da saudade e, de vez em quando, voltam à terra pela memória no nevoeiro das tardes ou nas noites de insónia.

     Há pedaços de tempo para fazer o Tempo; aquele cujos segundos nos leva à eternidade; a centelha de pó a reluzir no Sol; um retalho da alma no mais ou no menos infinito... E para além? Sim!, para além do Infinito?

     Ficam na história as lembranças impressas nas entrelinhas dos livros e as conjunturas dos homens naquilo que talvez fosse...

     Desculpa, Cardoso Pires! Mas não me posso esquecer daquele dia, ou antes, quase noite, quando, numa visita ao Castelo de S. Jorge, me disseste: - Mestre Gil, menino! Tens nele as "memórias da tua democracia": a minha democracia nas palavras verticais  nem sempre possível, num mundo de homens onde a aldrabice, a vigarice e a falta de responsabilidade imperam. Saramago ia receber um prémio da Associação Portuguesa de Escritores. Quase no fim viemos embora. As estrelas, dependuradas no veludo da noite, faziam caretas de cores, brincando com o infinito; uma brisa levemente fresca, acordava figuras com oitocentos anos de história; figuras de nevoeiro e lendas que o tempo, em grande parte dos casos, tornou realidade... a nossa realidade. Separei-me de ti, lá para as bandas da Sé. Quase não falámos. O silêncio tinha -nos dito tudo!

     Enfim! Agora que passaste para além do "Túnel"; agora que esqueceste os Companheiros de outrora como fizeras à matemática para seguires o Mar; agora que, com certeza, já encontraste Stº Agostinho e lhe pediste para escutar a tua nova obra; agora onde não há praia nem cães e as baladas são celestes; agora onde o grasnar dos corvos não acontece e os heróis não rendem; agora... vem-me dizer, pela madrugada, ao meu ouvido esquerdo que ainda ouve, porque é que os homens são assim!


Fonte :  -   Artes & Artes, jornal de estudos, artes e letras nº 16 de     
                             Janeiro de 1999,  crónica do Escritor ULISSES DUARTE.


  O Poeta faria hoje, 11 de Março de 2012, oitenta e nove anos...

                                                                                                                             
 há cinquenta, que  a "Menina de Olhar Triste", vê partir a "barca" do Gil.



terça-feira, 6 de março de 2012

Crónica de António Lobo Antunes







   Quero ser filho da puta


         UM CRÍTICO teatral francês dizia que uma peça era má quando lhe começava a doer o rabo. Qualquer julgamento deste género tem o defeito de ser um pouco rectroactivo e talvez lhe prefira a perspectiva do pianista Rubinstein, que afirmava nunca assistir ao concerto de um colega porque, no caso de ser ruim, perdia tempo e, no caso de ser bom, saia de lá furioso. Dos exemplos citados poder-se-á inferir estar a crítica directamente relacionada com as hemorróidas e o narcisismo? E a autocrítica? O pintor Bonnard visitava os museus com uma paleta escondida na pasta e sempre que o guarda se distraía retocava à pressa os seus quadros; torna-se difícil um escritor ir às livrarias  barbear  adjectivos nos exemplares da montra. O acto de julgar em arte é muito complexo: Nabokov só louvava escritores medíocres e reduzia Hemingway, Conrad e Faulkner  a mentecaptos, no que se parecia com o tio que diante de um Picasso, levantou ao tecto as mãos indignadas
        -  Melhor que isto fazia eu em cinco minutos.
        e a minha porteira tem na sala, no espaço que os bambis de louça e as bonecas deixam livre, o Cristo de Velasquez num calendário-reclame  de uma oficina de bate-chapas pelo motivo irrespondível
        -  Que até parece que vai sair da parede a conversar com a gente, coitadinho
        critério tão seguro que se aplica aos caniches de quem os donos afirmam que só lhes falta falar.
        Não me preocupa que a um crítico lhe falte falar: preocupa-me que lhe falte ouvir. Um quadro, um filme, um livro servem para a gente aproximar a orelha e escutar. E se por acaso o quadro, o filme e o livro forem bons, escutamos tanto que não há espaço para palavras nossas. As únicas possíveis são as do caseiro a quem um coleccionador de que não me lembra agora o nome mostrou uma estatueta preciosa. O homem ficou a olhá-la que tempos, assombrado, girando a boina na mão, até soltar uma palmada imensa na coxa
        -  Ai o grande filho da puta
        que constitui no meu entender o melhor elogio que se pode fazer a um artista. Uma das pessoas com o gosto mais seguro que conheço é o meu pai: em vez de impingir teorias sobre os seus autores preferidos, lia-os em voz alta para os filhos
        ( - Reparem)
        sem os limitar nem os engrandecer: apenas mostrando-os, apenas ensinando-nos a reparar, não com palavras suas mas com as palavras deles. No fim fechava o livro, fazia-se um silêncio quieto, e quando o silêncio com o
        -  Ai o grande filho da puta
        lá dentro acabava, eu tinha a certeza de ter tocado naquela alegria para sempre do verso de Keats.
        Para mim, um bom crítico é assim: alguém que não limita a liberdade de apreciar (ou não apreciar) com o imperativo peso horrível do seu gosto pessoal em cima da minha cabeça, porque desse modo corremos o risco, como dizia Wilde, de os críticos serem ilegíveis e os autores não serem lidos. Talvez que nada disto seja muito importante: lembro-me de uma ocasião, há anos e anos, ter ido com Jorge Amado a casa de um escritor, onde só estavam escritores, só se falava de escritores e de livros, e ninguém tinha coragem de ir embora pela certeza de que ficariam a falar mal nas suas costas. Ao fim de um bocado, o velho levantou-se e pegou-me no braço:
        -  Vamos embora, miúdo. A literatura é como o amor: a gente faz, não fala.
        Acho que não aprendi muito com os romances de Jorge Amado (os romances também não são para se aprender seja o que for), mas aprendi bastante com a sua atitude: o suficiente para ficar a saber da intimidade do acto do amor e do acto da literatura, o suficiente, pelo menos, para não me ralar se falarem mal nas minhas costas. E há sempre a esperança, não é, de que alguém ao acabar de me ler bata uma palmada imensa na coxa
        - Ai  o grande filho da puta
        e durante cinco minutos garanto que fico regalado.

Fonte :   Público Magazine, 24 de Setembro de 1995.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Canto de Mim Mesmo









AS CASAS e os quartos estão repletos de perfumes, as prateleiras estão
                                     repletas de perfumes
Eu próprio aspiro essa fragância, conheço-a e gosto dela,
Eu próprio dela poderia embriagar-me, mas não o permitirei.
A atmosfera não é um pefume, não sabe a emanação alguma, é inodora
Para sempre ficará na minha boca, por ela me apaixonei,
Irei ao rio junto ao bosque e despojar-me-ei de disfarces e roupas,
Estou louco por entrar em contacto com ela.
O fumo da minha própria respiração,
Ecos, ondulações, murmúrios e sussurros, raiz do amor, fio de seda, forquilha
                                     e vide, 
A minha respiraçãoe inspiração, o bater do coração, o sangue e o ar que 
                                     passam pelos meus pulmões,

O odor das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das rochas escuras
                                     do mar, e do feno no celeiro,
O som das palavras que a minha voz atira aos remoinhos do vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, os braços à volta de um corpo,
O jogo da luz e sombra nas árvores com os dóceis ramos balouçando,
O prazer de estar só ou no tumulto das ruas, ou pelos campos e colinas,
A sensação de saúde, os gorjeios  do grande meio-dia, o meu canto ao
                                    levantar-me da cama e encontrar o sol.

Achas que mil acres são muitos? Achas que a Terra é muita ?
Praticaste o necessário para aprender a ler ?
Sentiste-te orgulhoso por captar o sentido dos poemas ?

Fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem de todos os poemas,
Possuirás o que há de bom na Terra e no Sol (há milhões de sóis),
Não terás coisas em segunda ou terceira mão, nem verás pelos olhos dos
                                   mortos, nem te alimentarás dos espectros dos livros,
Nem através dos meus olhos verás, nem de mim terás as coisas,
Escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás .



Autor:    Walt Whitman  (1819-1892).


Nota:  O autor neste poema refere-se à SOLIDÃO , e diz-nos que é no silêncio, 
            na distância dos outros e na abstracção do mundo que nos rodeia que
            podemos voltar a encontrar-nos !
                       

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Um Poeta da Liberdade


            Há quem diga que a palavra poética só se anuncia  quando o poeta já tem percorrida a maior parte da sua vida e que a poesia é, na sua mais secreta essência, um novo nascimento; ou pelo menos, uma porta para o conhecimento de outra dimensão da vida. A essa dimensão, nem sempre acessível, podemos dar o nome de sagração. Trata-se, para além disso, dessa real comunhão com os homens do seu tempo, essa comunhão há muito procurada e jamais entrevista, pois todo o homem é, acima de tudo, um ser tão solitário como o lobo de uma pradaria inóspita.

            Quando um poeta atinge o momento dessa sagração,  não está só a penetrar numa nova dimensão: está também a afirmar todo o caminho percorrido até aí. Nenhum criador poderá negar o seu passado, mesmo que este se paute pela mais absoluta vulgaridade, mesmo que esse passado se situe na fronteira entre o medo mais infeliz e a absoluta felicidade, que é aquela em que todos nós nos situamos em maior ou menor escala, conforme o pulsar com que enfrentamos a vida.

            Esta introdução de cariz quase existencial, serve-nos para início de apresentação de uma personalidade literária que considero das mais marcantes que nos foi dado conhecer. Em primeiro lugar, pelo fascínio que paulatinamente, a figura do poeta e do cidadão Ulisses Duarte me provocou; em segundo lugar, porque descobri nele uma dimensão poética invulgar, tão invulgar e surpreendente, que há nele uma grande capacidade para esmagar (no bom e, mesmo, no mau sentido) um razoável número de jovens poetas que jamais virão a ter qualquer hipótese de vir a ocupar um lugar na literatura. E, se Ulisses Duarte não for recuperado pelo seu tempo ou pelo tempo futuro, arriscar-se-á a não figurar nela também, pois a malevolência e a inveja do seu tempo poderão não o permitir.

            É claro que, em questão nenhuma, e muito menos no que respeita à literatura, não podemos fazer previsões apressadas: apenas adivinhamos uma possibilidade. Apesar de Ulisses Duarte ter publicado o seu primeiro livro em 1958  (tinha o poeta 35 anos), só em 1991 com a publicação de O Eco das Palavras, é que o autor renasce para essa nova dimensão poética, após um longo percurso de silêncio, no qual ocupou a sua  vida com a pintura, a publicidade e o grafismo. Desde Terra e Céu, o seu primeiro título, seguiram-se os títulos Da Minha Paisagem (1959) e Poemas de Sol Estrangulado (1960). Apesar da escassa colaboração em publicações dispersas, só renasce verdadeiramente para a poesia no início dos anos noventa. De qualquer forma, é o início, como dissemos, da sua sagração como poeta.

            Falar da poesia de Ulisses Duarte é o mesmo que falar da própria liberdade criativa, liberdade do espírito, liberdade que ascende a uma forma de eternidade. E esta é também uma das formas da nossa condição, sobretudo se houver em nós uma missão determinada, seja ela qual for. O que é certo é que nem somos inteiramente livres, nem somos verdadeiramente eternos: existe em nós a vontade dessa dupla dimensão. Há, porém, uma forma,  que é sempre uma forma subtil, discreta e quase sempre plena de autenticidade, é aquela que compreende o enigma da palavra. É de notar que o uso pleno da palavra poética é já um princípio de liberdade. Diz José Gomes Ferreira que não há machado que corte a raiz ao pensamento! De facto, é no acto íntimo de pensar que reside a nossa mais verdadeira liberdade, pois não existe qualquer chave que permita a outrém aí penetrar, a não ser que lha facultemos e, mesmo assim, há sempre um lugar secreto no nosso pensamento ao qual só nós temos acesso. Desse profundo grau de intimidade, surge a dimensão verbal. Podemos dizer que a experiência poética, seja ela mais ou menos intensa, (e o grau de intensidade não é mensurável) é sempre a consequência de um pensamento: a poesia não é apenas o som verbal, como muitos teóricos da literatura nos fazem crer, mas é, essencialmente, uma forma autêntica de pensamento a qual transporta em si a possibilidade dessa outra dimensão pela qual nos guiamos e que é o próprio sentimento. Porém, não podemos dar a primazia nem só ao pensamento nem só ao sentimento: ambos se completam na sua mais íntima verdade.

            A poesia de Ulisses Duarte situa-se dentro desta perspectiva de liberdade. Ela é feita de memórias, de breves registos, mas o seu conteúdo metafórico ultrapassa o mero memorialismo. E isto porque há nela também uma dimensão ideológica, como é visível no título Poemas do Sol Estrangulado. Porém, como toda a arte maior, no sentido mais geral, ela é apenas comprometida com uma dimensão humana e jamais com uma ideologia específica. Repito: a arte, e muito menos a arte literária, não deve ser panfletária, pois não se dirige, expressamente, a um objecto directo. A época em que Ulisses Duarte se assume como poeta e como poeta surge publicamente, está pejada de fantasmas: seja o início de uma Guerra Colonial; seja a consolidação de um regime com o qual não se identifica; seja a surda e velada perseguição aos seus contemporâneos ou, simplesmente, companheiros de jornada, que também não se identificam com o regime; seja, assim, a situação social do seu país numa época aparentemente serena, cujo barril de pólvora ainda levaria muito tempo para explodir. Mediante todos estes condicionalismos, a palavra poética teria de ser pesada de outra forma: o poeta poderia ser livre como poeta, mas não o era do ponto de vista social e político, pois houve sempre uma tentativa inusitada para conservar as flores de estufa que falavam a favor do regime e para expulsar para sempre as ervas daninhas (passe a metáfora) que falavam de outras coisas menos passíveis de uma leitura clara ou inteligível: basta que se enunciem novos códigos para que as mentes fechadas se desorientem e se tornem baratas tontas. Ora, era isso mesmo que se verificava nos finais dos anos cinquenta e durante os anos posteriores: um regime de baratas tontas mais ou menos polvilhado por uma inteligência marginal, temida e, sempre que possível, silenciada.

            O certo é que Ulisses Duarte pertence a uma geração poética que jamais se identificou com os silêncios do regime (de qualquer regime, a não ser o da liberdade absoluta), pois esse princípio de liberdade não selecciona estilos, nem obedece a nenhuma conduta estética: segue o seu caminho pessoal, múltiplo e diversificado. Referimo-nos a poetas como Eugénio de Andrade, Natália Correia, Mário Cesariny, Alexandre Pinheiro Torres e António Manuel Couto Viana, todos nascidos em 1923. É um conjunto de poetas maiores num mundo menor. No entanto, essa foi também uma das condições que a poesia impôs a si própria: existir pelo revés, na contrariedade, veículo metafísico que acompanha toda a contingência de modo a torná-la, se assim o quisermos, numa espécie de paraíso perdido, sempre reencontrado e jamais reconhecido, pois as políticas e os regimes que as acompanham são cegas perante essa proposta ontológica.O universo que a poesia nos propõe, não é um universo irreal, ao contrário do que muitos poderão pensar: a palavra poética possui a sua verdade intrínseca e é, muitas vezes, tão real quanto o nosso real sofrimento, mais real que as demagogias políticas, mais real do que os nossos próprios sonhos. As grandes propostas poéticas do nosso tempo, poderão ser verdadeiras utopias; mas, enquanto utopias, são reais, enquanto documento literário e humano, são reais. De resto, não nos é possível medir a fronteira entre uma proposta metafísica, imaterial, e a realidade social e política; não podemos misturar um espírito fraco com um espírito forte, pois jamais saberíamos onde acaba o poder de um e a fraqueza do outro. Em que dimensão colocar a viagem camoniana? Na dimensão histórica ou na dimensão mítica? Qual delas a mais verdadeira? sem dúvida que a dimensão mítica é a mais verdadeira, pois há um espírito milenar, comum, que progressivamente a mitificou: essa é a viagem que nos resta: o mito ultrapassa, quase sempre, a verdade histórica.

            A poesia de um Ulisses Duarte, poeta de que hoje nos ocupamos, ultrapassa a dimensão histórica, temporal, para nos abrir os olhos ao sonho. Dos poetas da sua geração, será o que possui a voz mais cristalina, circunstância que fará dele, na companhia de um António Manuel Couto Viana, um dos nossos melhores poetas líricos. O lirismo português possui uma larga tradição e não é por acaso que o associamos ao fado, a canção-destino, também ela surgida para combater uma ideologia cinzenta, que foi sempre aquela que nos marcou desde, pelo menos, o domínio filipino. Esse lirismo acentua-se, em Ulisses Duarte, se observarmos que muitos dos seus poemas circulam em canções que ficaram nos ouvidos de várias gerações. Poemas como “Basta uma onda”, “Menino pobre” ou “Bairro da lata”, cantados numa época de ascensão neo-realista e onde se procurava chamar a atenção para uma situação social muito próxima da miséria. Tempo houve em que Ulisses Duarte improvisava canções para os homens da Rádio em troca de uma simples “bica”, como chegou a revelar-nos. Muita da sua poesia corre, assim, aos quatro ventos, que é outra forma de a poesia assumir a sua mais exigente liberdade.

            É em 1965 que surge o filme Madeira, Pérola do Atlântico cujo argumento é composto por um longo poema de Ulisses Duarte, o qual dá o título ao documentário. Esse texto perde-se, mas ficou também na memória de muitos. Nem mesmo nessa altura o poeta Ulisses Duarte pactuou com os caprichos do regime. Quando o realizador deste filme coloca a imagem de Salazar ao lado dos navegadores portugueses que descobriram a ilha da Madeira, o poeta recusa-se a assistir à estreia do filme como forma de protesto. Escusa-se formalmente, alegando, com ironia, que não possui um fato decente para assistir ao evento.

            Sempre o caracterizou uma acentuada truculência, uma ironia por vezes brejeira, característica do Norte, pois é natural d Matosinhos. Ainda hoje essas características teimam em permanecer, circunstância que acentua a sua dimensão humana, sempre decidido a um gesto generoso, fruto de uma imensa espontaneidade. É um coração autêntico, sem reservas mentais: é o poeta de sorriso largo que oferece o seu lirismo mesmo aqueles para quem a poesia nada diz. Apesar de existir, na sua poesia, uma certa tristeza camuflada, uma nostalgia semelhante à de Cesário, o que dele nos fica é uma rasgada alegria, um riso cavado bem lá no fundo do seu ser. E é sempre assim que o recordamos quando a ele nos referimos entre amigos. Ulisses Duarte não é apenas o poeta do sonho, é também o poeta da amizade. Vêmo-lo com frequência a estimular aqueles que procuram os seus conselhos, a dar-lhes um incentivo, como se a sua voz fosse a de um pai tutelar; e é-o, de facto, pois a sua longa experiência de vida, e também a sua juventude, permitem-lho ser. É autêntico nas suas convicções e, se tiver que atacar um companheiro de jornada é porque a sua sensibilidade foi particularmente ferida, como, de resto, é frequente acontecer nos domínios exíguos do nosso meio literário. O facto, de sempre se ter assumido como um poeta da esquerda, tornou-o quase vítima de pequenas atrocidades, como é frequente  acontecer num país que usa a mesquinhez como bandeira e que não poupa aqueles que possuem uma sólida convicção, seja ela de esquerda ou de direita. Apesar do convencionalismo desta bi-partição ( a qual tende, progressivamente , a desaparecer, pelo menos em termos doutrinários), a estreiteza das opiniões e dos pontos de vista, permanece: ainda há certas criaturas semi-poderosas, que nos procuram impor a pior das orientações. Há a fatia da pseudo-inteligência portuguesa que ainda se rege pela tendência nociva da “capelinha” e que só aceita aqueles que dela fazem parte. É por isso que os espaços que restam àqueles que não têm “capelinha” se compõem de longos desertos em que os únicos oásis são eles próprios.

            Ulisses Duarte nunca teve capelinhas, pois a sua dimensão humana jamais lho permitiu. É por isso que em 1960 faz um interregno na sua produção poética em livro, para se dedicar à pintura e à publicidade. Não deixa, contudo a poesia, como o comprova, não só o já referido filme sobre a Madeira, como também uma vasta discografia. Na década de sessenta figura num disco, juntamente com poemas de Cecília Meireles, de Manuel Alegre, e de José Augusto-França. Um poema seu intitulado “Carta ao Meu Irmão Brasileiro”, foi sucessivamente cantado por António Mourão, Rebocho Lima e por Amália. Este poema, retirado do segundo livro do autor, é ainda hoje uma imagem de marca de Ulisses Duarte e que Amália imortalizou. Entre fins de sessenta e meados de setenta, Ulisses Duarte é já um publicitário conhecido e a sua pintura atinge uma razoável cotação no mercado. Teve êxito um programa de rádio da sua autoria intitulado “Passatempo Pac”, do Rádio Clube Português. Nesta época, ajuda a fundar o jornal “Notícias da Amadora”, juntamente com o poeta António de Jesus.

            A publicação, em 1991, de O Eco das Palavras, marca o regresso do autor às livrarias, como já dissemos e, desta vez, fê-lo para nelas permanecer com novas publicações. Seguiram-se Poalhas do Tempo (1992); O Cajado do Peregrino (1993) e o volume de composições sobre o Natal intitulado Vilancetes Para o Meu Presépio (1993).

            Em O Eco das Palavras, Ulisses Duarte recupera grande parte das suas canções espalhadas em disco e brinda-nos com um conjunto de inéditos onde é visível a sua craveira poética. Dir-se-ia que o poeta esperou estes anos para voltar em força  e nos surpreender de uma forma definitiva. O poeta apresenta-se com as influências de dois grandes mestres da poesia: Cesário Verde e Garcia Lorca. Marca o seu pulsar poético a partir destas influências (pois nenhuma experiência poética nasce isolada)  e ficamos com a clara consciência de um novo poeta que, pela temática apresentada, seja ela a solidão do escritor na cidade, seja ela a condição social do seu semelhante, seja a profunda amizade que vota aos outros poetas, este novo livro é comparável a uma ressurreição. Pena é que tivesse sido pouco divulgado e mal distribuído.

            Poalhas do Tempo constituiu um poema único e revela-nos uma curiosa tendência do autor para um certo misticismo de feição cristã. Neste livro, Ulisses Duarte humaniza a figura de Cristo e é através dessa figura emblemática que percorre os grandes mitos da história nacional. Desde o Portugal Medieval ao Portugal de Aquilino Ribeiro, passando pela própria revolução de Abril, o autor procede à recriação de um poema épico sob a forma de quadras, onde é visível uma grande capacidade criativa ao nível das imagens. Diz-nos: “Depois, é Portugal que se atraiçoa/trocando a confiança pela intriga./Para mostrar um Deus que nos castiga,/camuflando um Cristo que perdoa.” Dir-se-ia que há, nestes poemas, um conteúdo esotérico cuja mensagem é passível de muitas leituras. Por outro lado, esse esoterismo esbate-se quando se refere à revolução de Abril e ao próprio Aquilino. Diz-nos: “ E eis que, por fim, chegou a liberdade/da qual fui tantos anos paladino./Já ninguém vai prender o Aquilino/ nem quebrar as estrelas da vontade.” É no final do poema que o autor nos revela, porém, o seu estado de alma face à situação do país, por cuja liberdade lutou a vida inteira: “Mas ainda ouço o gargalhar dos lobos/brincando ao velo d’oiro de Medeia/e ao redor de mim, numa alcateia,/uivam de cupidez, os mesmos lobos.” É de notar que o conteúdo místico está presente na totalidade do poema, conteúdo que é acentuado pela defesa de um determinado conjunto de valores defendidos pela ética cristã. Este longo poema, dada a sua interdisciplinaridade histórica, literária, mística e satírica, merece um estudo à parte e estou certo de que a decomposição dos seus vários planos constituiria uma revelação surpreendente, não só pela estrutura, como também pela perfeita coerência da mensagem e do notável encadeamento lexical. È um poema épico de final de século o qual, só por essa característica, merecia esse dito estudo.

            A mesma dimensão cristã verifica-se no volume posterior, O Cajado do Peregrino, e mais acentuadamente ainda, no volume dedicado aos vilancetes de Natal, seu último livro publicado até ao presente. No dizer de Travanca Rego, O Cajado do Peregrino é um conjunto de poemas construídos a partir de uma parábola. De facto, no início de cada poema, o autor coloca em epígrafe, frases retiradas dos Evangelhos e, a partir delas, elabora uma espécie de paráfrase que dir-se-ia complementar a ideia contida em epígrafe. É claro que há em todas elas um conteúdo religioso, conteúdo que, por sua vez, irá motivar o conteúdo essencial de todo o livro. Desta vez, a mensagem já não diz directamente respeito a uma crítica social, embora esteja presente a ética cristã. Trata-se de um conjunto de poemas de carácter intimista e confessional e que nos revelam o estado de espírito do poeta no momento presente.

            Quanto ao volume dos vilancetes, constitui um exercício de absoluto virtuosismo poético, rítmico e metafórico, executados de acordo com a cadência tradicional das quadras populares. Apesar desse cunho popular o seu conteúdo não abandona a mesma ética cristã dos livros anteriores.

            Com estes três volumes, o poeta recebe o importante Prémio Aquilino Ribeiro, sucessivamente entre 1991 e 1993. Eis, pois, a sua sagração como poeta. Recebeu já outros prémios, como por exemplo o espadarte de prata, instituído pela Câmara de Sesimbra.

            A poesia de Ulisses Duarte mantém-se cada vez mais viva e mais forte, quer pela publicação de poemas seus em catálogos de exposições, quer num maior número de jornais e de revistas (onde também colabora como cronista) e, também, em importantes antologias poéticas, como aquela dedicada a Cesário Verde, ou a Paulo Cid ou, ainda, a João de Deus, já para não aprofundarmos aquela em que colaborou em homenagem a Torga.

            Estamos em presença de um poeta surpreendente pelo seu vigor plástico e criativo, pelo seu virtuosismo poético e pela sua demolidora versatilidade no que respeita ao uso de diferentes géneros poéticos. É um poeta que ainda tem muitas surpresas para nos dar, pois possui um vasto espólio de poesias inéditas. Será necessário fazer-se com brevidade, uma antologia da sua obra poética, pois Ulisses Duarte, tal como o nosso Cesário Verde, é ainda um estranho neste conturbado tempo em que nos é dado viver. Um tempo que o poeta cada vez compreende melhor e que nós, seus discípulos mais novos, cada vez compreendemos menos.

            De qualquer forma, Ulisses Duarte é muito mais conhecido do que aquilo que podemos julgar.
O seu coração é do tamanho de um século inteiro.                            

Fonte: Ensaio publicado, no Jornal Artes & Artes de Outubro de 1997 (número 4), pelo seu
 Director José Fernando Tavares