domingo, 31 de julho de 2011

SENTIDA HOMENAGEM







Brilhante

 MARIA LÚCIA LEPECKI  -  (1940-2011)

Sendo desde há muito Sua admiradora aqui fica a minha modesta homenagem.

CRÍTICA

Ficção


“Levantado do Chão” : história e pedagogia

Começarei de um modo que, em geral, não é do meu agrado: o elogio, um tanto intempestivo nesta altura do texto, de Levantado do Chão, de José Saramago. O romance abre, não me restam dúvidas, novos caminhos na obra do Autor e no quadro geral da narrativa portuguesa dos nossos dias. Um livro empolgante, comovedor, de extrema beleza, primeira realização de inteira maturidade de um escritor que tem sabido, ao longo dos anos, construir os caminhos de si mesmo.

De certeza não saberei colocar diante dos meus leitores todo o mágico encanto de Levantado do Chão. O trabalho da crítica é problematizar, tentar construir sentidos e significações. Tanto uma como outra actividade sugam, quase sempre com insuperável voracidade (e pelo menos para o leitor comum), o quid de beleza da obra literária. O que se vai aqui ler é um pálido reflexo do romance. Um inicial percurso de leitura, onde a posição analítica constrangerá a uma certa frieza. O peso dessa primeira saga alentejana, a sua dignidade, a sua força inibem-me. Receando perder-me em discurso afectivo, parafrásico talvez, optei pelo distanciamento. Um distanciamento sofrido longamente, pois entre a decisão de falar do livro e o instante da escrita destas linhas medeia muito mais de um ano. Período no qual  Levantado do Chão foi livro de cabeceira , encantamento permanente, descoberta luminosa e sempre renovada. Um encontro com a beleza. Perdoe-me o Autor, desculpe-me o Leitor, se eu não souber. Fica a análise, incipiente, com as deficiências que nela sinto e vejo, com as falências inevitáveis; fique a análise como gesto de ternura para com um livro que invadiu como poucos a minha vida.

UMA FORÇA DA NATUREZA

Na escrita, na linguagem, no modo do imaginário, o último romance de José Saramago é profundamente inovador, revolucionário mesmo, no quadro da ficção dos nossos dias, no nosso espaço. São seus parentes próximos os textos da grande narrativa ibero-americana actual. Garcia Márquez, Nélida Piñon de Tebas do Meu Coração e, recuando no tempo, de Guimarães Rosa, de Grande Sertão: Veredas. Construído numa dignidade de linguagem de todo invulgar, numa beleza conteudística e formal quase dolorosa, espelho do modo afectivo e inteligente como José Saramago está no mundo enquanto homem político e intelectual, Levantado do Chão
é mais que envolvente, avassalador. Uma força da natureza, se tal é lícito chamar a um produto cultural.

Lembrando embora mestres da Literatura Ibero-Americana de hoje, até por tratar, num espaço histórico-cultural antigo  -  Portugal  -  uma das formas possíveis de Novos Mundos, o romance de Saramago não renega raízes nacionais. E a criatividade da palavra, a tensão poética do discurso, o uso peculiar de níveis ou tipos de linguagem buscam, também e fundamentalmente, inspiração no que a Literatura Portuguesa de mais positivo tem produzido ao longo dos tempos. Convivem, assim, nesta saga alentejana, ‘ecos’ de linguagem e sensibilidade classicizantes com a reelaboração, depuração mesmo, de certos estratos do coloquial e do falar regional. Retomam-se, capitalizando-as para novas potencialidades produtivas, experiências levadas a cabo por sucessivas gerações de poetas e prosadores, reinventam-se as tentativas que o próprio Saramago, poeta, cronista, contista e romancista, ao longo da sua vida literária foi também realizando, num percurso que veio desaguar, por fim , no seu primeiro grande romance. No estilo de escrita, na linguagem onde se conjugam dados provenientes de espaços e tempos diferentes revivem, para nós, alguns momentos da História de uma Língua ao longo da sua Literatura. A fixação da memória linguístico-literária não será o menor encanto de Levantado do Chão e serve, sem dúvida, à configuração mais clara da variante de género a que pertence o livro: trata-se de romance histórico, numa das suas formas possíveis (e contaminada de saga e crónica), onde se historiciza (torna-se semelhante ao real concreto) tanto o narrado quanto a matéria-prima, a linguagem, de que se faz o texto. No acto de fixar a história/História de homens, a linguagem fixa também a sua própria ‘biografia’, a sua dinâmica ao longo dos tempos.

UMA FAMILIA DE RURAIS ALENTEJANOS

Não caberá aqui fazer um resumo de Levantado do chão. Direi apenas, para quem  não o leu, ser o livro a narrativa da vida  de uma família de rurais alentejanos (Os Mau-Tempo) ao longo dos três primeiros quartéis do nosso século. As vidas de António, João, Domingos ou Gracinda Mau-Tempo entrecruzam-se com as dos outros trabalhadores, alguns anónimos. No plano da simbólica da ‘reconstituição histórica’, aquelas são as vidas de todo o trabalhador alentejano, e não só. Segue a ‘biografia’ dos Mau-Tempo em paralelo com a da burguesia fundiária e, num último ‘tecido’ de figuração histórica, com a História de Portugal no século XX. O núcleo fundamental da narração ocupa-se da exploração, do desemprego, da «fome crónica» de que fala, algures, José Cardoso Pires. Ocupa-se também, e fá-lo natural e necessariamente, da lenta aquisição de consciência pelo trabalhador rural: o aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jorna e, finalmente, pela posse útil da terra. O romance fecha-se, em 1975 (a acção inicia-se em 1900) pela constituição de uma cooperativa agrícola, naquilo a que o próprio texto chama  «dia levantado e principal».

Além de histórico, Levantado do Chão é, obviamente, também um romance político. Ou será obviamente político porque histórico? Ou necessariamente histórico porque político? De qualquer modo, História e Política sustentam as significações e fazem-no de forma tão equilibrada, tão puramente literária, que em nenhuma altura a demagogia ou o moralismo contaminam a escrita. Nunca a veiculação de valores, o mero apontar de uma tese adquire predominância sobre o estético-literário. O leitor está sempre diante de um romance, ‘vendo’ personagens ‘vivas’ e acontecimentos ‘vividos’. Por empatia profunda, pelo sofrer junto com, transitamos para a percepção do que o texto propõe como mensagem válida para além da ‘realidade literária’.

Político e histórico, no sentido mais profundo que ambos os termos possam ter, Levantado do Chão deseja compremetimento e intervenção. Interveniente e comprometido é o Autor (pessoa civil ou instância do discurso), uma e outra coisa será o narrador principal. Autor ‘interno’ e narrador principal, consequentemente, responsabilizam-se pelo que dizem, conduzindo o texto de forma a fazer o Leitor compreender (reproduzindo-a, conformando-a no acto da leitura) a mensagem. A percepção crítica do dito é, assim, tanto efeito de um tipo de escrita como resultante de um processo de leitura que se vai aprendendo a ter.

UM DISCURSO PEDAGOGICAMENTE ORIENTADO

Da responsabilidade no dizer assumida pelo narrador principal e pelo Autor instância do discurso decorre (e mal grado a abertura também possível neste texto estruturalmente complexo) uma univocidade dominante, uma constrição de leitura que ‘obriga’ o leitor a organizar as potencialidades de significações numa única direcção  -  e isto muito embora se organize dentro de um princípio de relativa liberdade. Vale dizer: a univocidade de sentido ideológico e político, por paradoxal que possa parecer, tanto é produzida na escrita quanto (re)produzida numa leitura a que chamarei de pedagogicamente orientada . Para ser pedagogicamente orientada, a leitura terá de ‘obedecer’ às linhas estabelecidas por alguém a quem se chamará, por motivos óbvios no raciocínio que venho fazendo, mestre. Para tornar-se pedagogicamente orientada, será necessária a colaboração produtiva do discípulo. Um processo de comunicação de tal natureza implica, fatalmente, na presença de vectores complexificadores e descomplexificadores  do texto. Ao primeiro grupo pertence a pluralidade de vozes narrativas, o conjunto de discursos que, oralmente uns, por escrito (o do narrador principal e o do Autor instância do discurso) vão produzindo informações a serem, pelo menos virtualmente (‘fingidamente’, ‘ficcionalmente’), ‘organizadas’ pelo leitor para a construção, reprodução ‘livre’ do sentido e da mensagem. Paralelamente, e falo agora dos dados descomplexificadores, o narrador principal e o Autor instância do discurso apresentam as chaves para a leitura politico-ideológica  (unívoca) do contado. Recupera-se a ‘liberdade de leitura’, a abertura de escrita, num fechamento substancialmente necessário em romance como este. O tecido do texto, dialecticamente complexificado e descomplexificado ‘finge’ deixar-se entretecer pelo leitor. Este, docemente compelido, descobrirá, ‘por si próprio’, o que desde sempre o romance desejou fosse descoberto. O processo é, com toda a evidência, pedagógico: o mestre não obriga, conduz. O discípulo (leitor), não recebe, mas descobre e cria o que, no fundo, se lhe está oferecendo.

O JOGO DAS AUTONOMIAS E INTERDEPENDÊNCIAS

Uma prática pedagógica desta natureza implica em rigorosa organização do espaço e do modo narrativos; torna-se obrigatório um discurso susceptível de atingir a finalidade visada;  a produção pelo leitor, em fingida autonomia, de uma mensagem já existente. O primeiro (ou mais evidente) factor que propicia o funcionamento pedagógico de Levantado do Chão é a perspectiva interna, isto é, a colocação da narrativa a partir de primeira(s) pessoa(s). Há um narrador principal, encarregado de contar toda a história da família Mau-Tempo, mas há ainda mais: o narrador principal ‘delega’, não raro, a palavra a personagens as quais, durante certo tempo, e numerosas vezes ao longo do romance, assumem estatuto de sujeitos de acção informativo-narrativa. Se o narrador principal se identifica com um dos sujeitos da escrita (sendo outro sujeito, a este nível, o Autor instância do discurso), o mesmo não ocorre com os narradores personagens, cuja fala é sempre oral, sendo os segmentos informativos-narrativos por eles produzidos recuperados no discurso do narrador principal. Enquanto sujeitos de palavra, os narradores-personagens vivem uma tensão de opostos: temporariamente autonomizados ao produzirem verbo narrativo, recuam para o seu espaço natural  -  o da dependência de uma voz outra e maior  -  quando se ‘deixam’ recuperar pelo narrador principal. Esta tensão de opostos nos narradores internos é, de resto, análoga à que experimenta o Leitor exterior do texto: ele também se ‘autonomiza’ quando ‘pode entretecer’ os fios do texto, perdendo a ‘liberdade’ quando os entretece compelido pelo desejo de significação última e única que o narrador principal e o Autor instância do discurso, seres responsáveis, definitivamente propõem.

Falando o texto pela boca de um eu (narrados interno por escrito ou em oralidade, Autor instância do discurso), configura-se logo, no espaço da recepção, um tu. De dentro para fora do texto começa a produzir-se, então, uma clara relação dialogal, um frente a frente ‘concreto’ e ‘real’, entre quem escreve (ou diz para que se escreva) e quem lê. O diálogo dos dois espaços de produção do texto (o interno e o externo, este de ‘reescrita conduzida’) retoma a situação dialogal interna que já se viu existir na própria presença de narradores orais a quem escuta o narrador por escrito o qual, por seu turno, é interlocutor do Autor instância do discurso. Vai-se multiplicando o jogo das autonomias: à autonomia precária da personagem circunstancialmente narradora em oralidade, responde a do narradora ( e as mais das vezes subtilíssima) do Autor instância do discurso. Por outro lado, as interdependências também se estruturam: a personagem virtual ou realmente sujeito de narração depende do narrador principal dependendo este, para a clareza necessária da mensagem, da intervenção descomplexificadora ( e as mais das vezes subtilíssima) do Autor instância do discurso. As comutações de funções entre narrador  principal e personagens em estatuto de narradores fazem o primeiro assumir, precariamente, a posição de discípulo, pois aprende o que o outro (personagem) diz. Naturalmente, quando tal ocorre, mestres serão os narradores personagens. No jogo de vozes que dizem e ouvidos que ouvem, na troca de posições e de funções, no oscilar de sujeitos de ensinamento e sujeitos de aprendizagem, o texto mais uma vez representa, no modo mais profundo da sua leitura, a sua natureza pedagógica. Para entender o jogo pedagógico até aos limites máximos, também o Autor instância do discurso intervem: com efeito ele ‘ouve’ todas as vozes  (é discípulo,  precariamente),  ‘prevê’  as reacções possíveis do Leitor e, já definitivamente mestre, pode comentar, julgar, organizar, em definitivo, a produção final de sentidos.

Por multiplicar os sujeitos de produção e recepção de informações, por fazer conviver autonomia/criatividade com dependência, Levantado do Chão é a típica escrita da troca pedagógica. Para esta troca existirá, como é natural, tanto um conteúdo objectivo de saber quanto a garantia de cientificidade do que se oferece como o ‘a ser conhecido’.

A LEITURA DA VERACIDADE

Creio residir na qualidade científica (‘fingida’, ‘recuperada em fingimento-ficção’  -  pois Levantado do Chão comunica literariamente, pesem embora suas raízes no real histórico português) a substância histórica do romance de Saramago. Substância pela qual a escrita de ficção se aponta também como escrita do real, num processo de metamorfose nunca terminada. A história de uma família de trabalhadores rurais  -  personagens criadas   -  é o nódulo ficcionado a partir de onde se faz ver o discurso do tempo real e histórico dentro da palavra romanesca. Todavia, para que a saga da família Mau-Tempo (que é, afinal, o que se lê, e não uma História das lutas camponesas no Alentejo) adquira fidedignidade, ‘qualidade científica’, é preciso um recurso de natureza estrutural e de função significativa. Tal recurso é, novamente, o uso da perspectiva interna propiciadora do que lhe chamarei pacto de leitura em veracidade.

De facto, mais que produzir efeito de real (verosimilhanças), o romande de Saramago parece querer construir efeito de veracidade, de acontecido. Mais, talvez,que assumir o estatuto de romance, ele aspirará (‘ficcionará’ aspirar) a ser crónica, género de que possui, com a maior evidência, o traço do testemunho presencial. Vejam-se, em abonação do que digo o recurso intermitente à narrativa in praesentia cujo efeito de leitura e da área do discurso cronístico, não exactamente do romanesco. Ou será da área do romance na medida em que este, obedecendo à sua natureza profunda e à sua génese, também aqui luta contra o romanesco desejando aproximar-se do histórico? De diferente tipo de crónica, a literária, não exactamente a histórica, Levantado do Chão tem ainda outros caracteres : a meditação, a poeticidade e, em certa medida, o diálogo. De resto, é novamente o diálogo  -  dimensão importantíssima neste livro  -  que deve ser chamado à arena para ajudar a descrever o mecanismo de produção do efeito de veracidade. Quando um narrador, qualquer que ele seja, diz eu e por esta via transforma o Leitor em tu, quem lê contamina da sua própria historicidade/concretude/veracidade o eu que produz o texto. A ‘verdade’ que se está a construir, dentro do texto, pela presença dos eus-testemunhas-narrador fica fortalecida pela verdade objectiva da pessoa do Leitor. ‘Isto que leio é verdade (pensa, sente, quem lê) porque é dito por alguém que está, comigo, num circuito normal de comunicação, o mesmo circuito que, na vida real, tenho com qualquer pessoa com quem converse.’

ENTRE HISTÓRIA E ROMANCE

Dentro da complexidade de diálogos presentes em Levantado do Chão, ainda um merece referência. Refiro-me às falas onde o narrador principal, dirigindo-se tanto a si mesmo como ao Leitor, trata a questão da escrita do texto. A presença da problemática desta ordem é curiosa por levantar uma contradição dialéctica entre o efeito da veracidade e a verosimilhança. Por outras palavras, Levantado do Chão tanto quer ser compreendido como espaço de verdade objectiva como quer ser visto enquanto espaço de verdade ficcionada. Quer oscilar ‘fingidamente’ entre História e romance. Para ser da área da ‘História’, vale-se da documentação: as sucessivas e convergentes narrativas em primeira pessoa são testemunhos fidedignos, o Autor instância do discurso identifica-se com o Autor pessoa civil, que sabe o que está a contar. Para transitar ao espaço da ficção, o texto consciencializa a problemática da palavra: sabe, num certo sentido, as suas limitações, sabe as limitações do discurso e, no próprio acto de a estes elementos apontar, as próprias limitações ultrapassa.

Veja-se que o narrador principal do romance tem a noção de que a ‘verdade’ contada por ele e por todos os narradores orais é incompleta não por falta de fidedignidade, de ‘cientificidade’ de quem conta, mas por falência natural do discurso. Frequentemente, ao dirigir-se ao texto (ou ao Leitor, ou a si mesmo sobre o texto) o narrador principal conhece as restrições que o ameaçam. É difícil dizer a totalidade das coisas  
‘acontecidas’. As restrições, limitações à fala, não se relacionam com a incapacidade substancial da palavra (o conteúdo ideológico de posicionamento de tal natureza iria ao arrepio do pensamento marxista que sustenta o texto) mas dimanam da necessidade de circunscrever o  discurso, a crónica ‘fingida’ ou o romance contaminado de veracidade ao essencial. É forçoso dizer o fundamental, sabe-o o narrador principal, é preciso comunicar o mais significativo sendo, por consequência, razoável libertar o texto de elementos que, na perspectiva da necessidade narrativa, ali estariam eventualmente a mais. A selecção dos elementos a narrar não teria, em si mesma nada de extraordinário. Ela existe em qualquer narrativa. Se não fosse apontada (e repetidas vezes), nem sequer seria percebida pelo leitor. Contudo, o narrador refere  a necessidade de eliminar potenciais elementos ‘divergentes’ do núcleo, justificando-se basicamente com o que chama  «urgências»  do discurso.

A FICÇÃO SOBRE A VERDADE

Ora, denunciando o trabalho selectivo, o narrador principal complexifica a posição do leitor em relação ao texto, complexifica o próprio pacto de leitura. Já se viu que a perspectiva interna, a narrativa-testemunho, institui o texto como veraz. O leitor sente-se, num primeiro impulso, diante de factos acontecidos, diante de texto contaminado pelo discurso da História. Sabe-se que qualquer discurso histórico-científico cria, em quem o lê, a impressão de estar diante da ‘totalidade definitiva’ dos acontecimentos. Quando Levantado do Chão mostra seleccionar elementos, esclarece que não diz tudo, provoca o recuo do Leitor: ele já não está diante de História, de testemunho, de documento, mas está com um discurso só ‘fingidamente’ científico: tem entre mãos um artefacto literário. O pacto de leitura torna-se, então, tenso   -  na tensão encontrando-se novos recursos de produção de sentidos. O texto não é verdade sobre verdade,  mas ficção sobre a verdade. Da ficção, do discurso criador, nasce o prazer da leitura. Da verdade reconstruída surge o conhecimento.

Quando denuncia o texto como selectivo, o narrador principal levanta a questão da sinédoque (representação do todo através de uma parte) como conatural não apenas da ficção mas de qualquer tipo de discurso. Veja-se,  por exemplo: «Estão aqui quantas, vinte pessoas, e cada uma delas seria uma história, nem se imagina, anos e anos a viver é muito tempo e muito caso. (…) Dá vontade, ao menos, de voltar atrás e contar por miúde a vida e amor de Tomás Espada e Flor Martinha,  se não fossem as urgências destes acontecimentos (…).  Só entrar na igreja e estar nela, só estas caras, feição por feição, e devagarinho cada ruga, seriam capítulos extensíssimos »  (pp. 218/219 da 1ª ed.). Ou, ainda:  «É portanto um homem com história, infelizmente não relatável aqui» (p.231, id.). Já nos primeiros capítulos, de resto, há a clara noção de que narrar é seleccionar, que há-de haver um critério ( a «urgência destes acontecimentos», isto é, o seu núcleo fundamental tanto quanto a obrigação e a premência de os contar) susceptível de organizar, orientar, e a dizer-se. «Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho de uma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos (…) não acabariam nunca mais»  (p. 59.id.). Sabendo que a sua narrativa, por urgência, tem de ser sinedóquica, o narrador principal não ignora, por outro lado, ser naturalmente selectivo, sinedóquico, restritivo, todo o discurso: «Foi um Verão de grandes aflições. Houve tais trovoadas que caíram dos pinheiros os homens que andavam a tirar a cortiça, e caindo se cortavam nos machados. Que esta vida é atribulada muito mais de quanto possa ser dito» (p. 66,id.).

PARA ALÉM DO LIDO

Compreendendo  -  e dizendo  -   ser o seu, e qualquer outro texto, sempre uma sinédoque, o narrador principal de Levantado do Chão coloca com a maior clareza, ao Leitor, a problemática da complementação do dito. Quem lê pode e deve, assim, imaginar e entender (imaginar para entender?) para além do lido, Só o fará, contudo, se enriquecer o dito do texto com outros dados, tão ausentes na evidência primeira da escrita quanto presentes na sugestão (‘compulsão pedagógica’) da produção das significações. Ao aprender que o texto é sinédoque, o Leitor avança para ele e através da própria capacidade de visualizar o inteiro pela via do parcial, participa na feitura da mensagem. Mais uma vez, e como sempre ao longo de Levantado do Chão, o sujeito de leitura dialoga com a escrita, aceita-a como comunicação pedagógica, criação colectiva.

A DESALIENAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Ainda uma última questão é objecto de considerações do narrador principal do romance de José Saramago: a questão da palavra como susceptível de despertar as percepções  para a concretude do real. A partir do modo mesmo como é construído, Levantado do Chão aborda sistematicamente a relação palavra-consciência . Isto é óbvio na opção pela perspectiva interna e na multiplicação de narradores.  Cada palavra, cada discurso veiculador de testemunho (de ‘conhecimento concreto’, ‘experiencial’ e ‘crítico’ do ‘real’ narrado),  dimana de estado maior ou menor de consciência, sendo, além disto, agente provocador da emersão ou aumento de consciência no auditor (narrador principal ou personagens) e no Leitor. Em última análise, toda e qualquer palavra produzida por qualquer dos sujeitos do discurso é a configuração dos passos dados para o aumento de quantidade e qualidade de saber do próprio sujeito de fala. Se é falando que as pessoas se entendem, em Levantado do Chão falando as pessoas entendem.O mesmo verbo que comunica a outro a informação, o conteúdo de um saber, estrutura, para o sujeito de fala, os graus e os níveis do conhecer. A plurificação das vozes narrativas revela-se, então, necessidade visceral de um texto que, ao fim e ao cabo, coloca a palavra enquanto tal como cerne da problemática de criação tanto da história que se conta quanto dos valores objectivos que para além da história se querem deixar ver.

Atento ao material-linguístico com que trabalha, sabedor da problemática
que em torno dele se pode levantar, o narrador principal mais de uma vez alerta o Leitor para a capacidade da palavra tem de criar consciência. O processo poderia chamar-se ‘desalienação do conhecimento’ por virtude da descoberta do real significado das palavras. O narrador principal tira-as daquilo a que Mário de Andrade chamou o «estado de dicionário», transformando-as em realidades vivas, concretas, dinâmicas. Compreender qualquer termo será, então, equivalente a historicizá-lo, de modo que a cada um sempre corresponda a percepção integral daquilo que ele significa no plano das vivências e experiências do homem. Só conhecendo a realidade escondida por detrás dos nomes e dos verbos, o leitor estará em contacto produtivo, consciente, com  discurso e com o real objectivo.

Veja-se, a título de exemplo, o seguinte passo:   «Que os trabalhos do homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro, (…) desmontar,arrotear, cavar milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear, abrir as covatas para estrume ou bacelo (…) chacotar a lenha, rechegar, enfornar, terrear, (…) o que vai aqui Santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, o que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros, e se é obra para homem ou para mulher e porquê»  (pp. 89/90, ed.cit.).

UM TEXTO REVOLUCIONÁRIO

Um ‘rol’ como este, uma enumeração, ensina a dizer as «palavras todas», ensinando o texto, no seu conjunto, a «entender o que elas são». Nesta altura o conteúdo político e histórico do romance contamina também a palavra que, politizada desde sempre por força da história contada e da mensagem construída, novamente se politiza, com evidência, porque se mostra como alavanca necessária e primeira para o desvendamento do real.

Visto na perspectiva da problemática da palavra, todo o Levantado do Chão se reconstitui, pela última e definitiva vez, como espaço pedagógico, dialógico e histórico-político. A palavra ensina ao mesmo tempo que se ensina a si mesma; dialoga com o seu próprio ‘ser’ e com o Leitor, à procura de fazer entender o que entendido deve ser; formula-se  enquanto realidade e instrumento políticos ao revelar-se verbo consciente. A confiança na capacidade desvendadora que toda a palavra pode ter habita cada página do romance. Não fosse ele um texto reolucionário, documento da fé nas capacidades do homem e nas virtudes daquilo que definitivamente o hominiza: o verbo feito para produzir a verdade. 


Fonte:  Jornal de Letras em 27 de Outubro de 1981.         


  
  

          





quinta-feira, 28 de julho de 2011

OUTROS TEMPOS ...




 jOSÉ CARDOSO PIRES
 

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.Crónica

À Mesa dos Dias

        Conversámos pela última vez lá em casa, semanas antes de o levarem inesperadamente para o hospital onde iria a morrer. Sttau Monteiro falou então de memórias, coisas datadas, como quem punha em ordem um itinerário vivido. Com um enorme buldogue a seus pés e um cigarro na mão, pareceu-me um homem exilado num refúgio final.

        Luís Sttau, o do horizonte povoado de projectos, agora que restava dele? Serenidade. Desinteresse. Nem um sorriso, nem um daqueles parênteses de humor que davam cor à amizade e que iluminavam o nosso quotidiano com reflexos de libertação. Nada. Ouvia-o e o que ouvia era um discorrer baço sem o contraponto da surpresa e efabulação que dantes o tornavam único entre nós todos.

        Mais tarde, telefonou-me a perguntar por datas, pormenores, casos avulsos  -  as memórias, outra vez. E pela preocupação e rigor e, pelas minúcias que estava a inventariar em solidão, pressenti que procurava fechar a conta-corrente dum período ou duma vida. Vi depois que sim, quando, quase cego e sem fala, no leito de morte do Hospital de São Francisco, se recusava a comer e a receber tratamento, e desse modo, pensei, procurava abreviar o seu fim.

        Agora leio num jornal que o editor do Luís Sttau Monteiro anuncia “À Mesa do Dia”, uma obra póstuma de memórias gastronómicas, e sobressalto-me: memórias gastronómicas? Do mais fundo de mim vem-me o pânico de que, para um público de superfície, este seu último original possa figurar como o selo dum cronista na linhagem de um Brillat-Savarin e não como a obra marginal dum escritor creditado pelos romances que nos deixou e pela renovação que imprimiu ao teatro português.

        Do prazer e do significado cultural da mesa, deixou Sttau Monteiro uma imagem largamente divulgada na revista “Almanaque” e n’ “O Jornal”. Isso sabe-se. Da sua arte de cozinhar poderão os amigos atestar o ponto de apuro e as subtilezas do paladar. Mas na descrição da mesa do vinho, as crónicas do grande dramaturgo de “Felizmente Há Luar” estão longe da exigência e do talento formal dos textos de José Quitério, um mestre.

        Por isso, para Sttau Monteiro, a Mesa Maior  foi a da Escrita. Essa, a da prosa que fez ficção, e a mesa do convívio a qualquer hora, desde o café com amigos numa pastelaria da Rua da Misericórdia às reuniões de redacção do “Almanaque” ou aos whiskies de bar em bar onde a sua imaginação e o seu humor se abriam como um estimulante criativo para resistirmos ao terror da cristianíssima ditadura desses tempos.

        Foi a uma mesa da esplanada do Narciso em Carcavelos, lembro-me bem, que ele me falou pela primeira vez do seu desejo de escrever. (Já lá vão, quê?, trinta e tal anos, nem sei.)

        “O que custa na literatura é que só tarde demais se sabe se valeu a pena”, disse-me ele então.

        Era Primavera. Diante de nós, na praia, andava um homem solitário, encavalitado numas andas, com o olhar perdido no mar.

        Outra mesa: ao fim da tarde, no Bar Carioca, uma estação de prostitutas trabalhadeiras e de espírito doméstico. Aí é que nós, com o Alexandre O’Neill, perpetrávamos número a número as mal-aventuras  do “Almanaque”.  A whiskies a preço módico, segredávamos política, ridicularizávamos os provincianismos oficiais e os bonzos consagrados e demonstrávamos que a austeridade era a capa do medo e da ausência da imaginação. (Vivíamos, não se esqueça, no Reino de Pacheco).

        Sttau iluminava-se de imediato e punha-se a cavalgar ideias e, no dia seguinte, era vê-lo à mesa da redacção, naquele seu modo espontâneo de narrar que o tornou inconfundível. Escrevia em à-vontade e sem fadiga. Uma escrita quase automática que o celebrizou nas suas “Crónicas da Guidinha”, mas que, no fundo, se mantinha nos romances que nos deixou, através do discorrer directo da narração e do desenfado com que recusava o efeito formal.

        Sim, para ele, contar, fabular, era um acontecimento natural. Vendo bem, foi isso que fez toda a vida em conversa ou ao correr da escrita. Era uma voz  “ad libitum”  muito casual, muito dele, que ocorria em todas as Mesas do Dia do seu roteiro de escritor, desde o diálogo entre amigos até à solidão do papel.

        Essa voz, hoje calada para sempre porque se desencantou do Dia para se refugiar na Noite, permanece junto de nós. É que podemos ouvi-la, lendo-a, e com o mesmo encanto e com a mesma saudade com que a ouvimos ainda ontem.

Fonte:   Público Magazine, 8 de Agosto de 1993.  

   

segunda-feira, 25 de julho de 2011

NATÁLIA CORREIA






Natália Correia

Mulher a quem não posso adjectivar, todas as palavras ditas por mim, não teriam o brilho necessário para qualificar Esta POETA, como gostava que a tratassem.

Este texto que agora publico, resulta do opróbrio, à data e sempre, da violação de um pai a uma filha de quinze anos a quem engravidou, e fez  voluntariamente um aborto.

DOIS BISPOS  - entre o martírio e a libertação

Opinião
Natália Correia

Longe e desmaiados estão os tempos em que a degenerescência ateísta do Iluminismo, decantando soturnidades no negrume da sotaina, soletrava que a religião era o ópio dos povos.

Da euforia materialista desse teocídio burguês derivou o prometeísmo do crescimento ilimitado que planificou as massas opiadas pelas técnicas alienadoras do produtivismo. É a vez dos magnatas do reino do quantitativo serem vaiados como propinadores do ópio dos povos. E chega a altura da nostalgia das virtudes do qualitativo procurar reencontrá-las  na reconstrução do espaço sacral devastado pelo quantitativo teocida.

Dos «filhos da flor» ao punk do punk  ao ovni , do  ovni à droga e da droga ao horóscopo, atarantaram-se as almas em busca de mitos, rituais e sobrenaturalidades. Eis o grande ensejo para a Igreja reunir as ovelhas tresmalhadas pela desintegração do regime unitário do sagrado com o chamamento de uma nova espiritualidade.

Nova, sublinho, em consonância com as teologias que vão emergindo desse crepúsculo da  «era constantiniana»,  que quer pôr termo à prevalência dos direitos da Igreja sobre os direitos do homem e à maior importância atribuída à ortodoxia que à verdade. Uma nova espiritualidade que, em suma, traduza o enraizamento do espírito na História e não na abstracção do dogma.


E a família?


Nestas considerações terá de deter-se quem, não se deixando opiar pelo indiferentismo injectado nas consciências  pelas forças obnubilantes  da Economocracia , esteve atento a dois discursos eclesiais que recentemente contrapuseram , em Portugal, a libertação humana fundamentada em razões divinas e a utilização destas para fins que reprimem as verdades do mundo.

O primeiro, proferido pelo arcebispo brasileiro D. Hélder Câmara, de visita ao nosso país, fala-nos da ligação que existe entre a fé e a vida, entre a história humana e um Deus libertador. Oposta a esta perspectiva de uma Igreja que dialoga com a vida e a serve, foi a voz do presidente da Conferência Episcopal D. Manuel Trindade, que nos habituara a acentos menos severos.

Cingido a um cego tradicionalismo sustentado pela deteriorada perspectiva do mundo pela Igreja, veio este bispo execrar o aborto legal de uma menina de 15 anos que, violada pelo pai, engravidara. Não esperávamos, certamente, que a Igreja quebrasse a lógica com que tem coonestado a sua condenação da interrupção voluntária da gravidez. Mas, do seu velho horror pelo incesto, manifestado na obrigatoriedade de dispensas para casamentos de parentes em graus proibidos, também não seria de aguardar a aceitação da ilicitude dessa criminosa união carnal, ainda que penalizando com a necessidade do martírio a pobre criança que sofreu a incestuosa violação.

Tais foram as palavras do bispo:  «A jovem devia ter sido ajudada a assumir a sua gravidez como uma forma de martírio.»  Saberá  Sua Ex.ª Reverendíssima que o número de meninas violadas pelos pais neste mundo é de tal monta que, a ser a mortificação santificadora do cilício que a Igreja destina às mártires da pénica brutalidade dos progenitores, não chegarão os bolandistas para darem continuação às Actas Sanctorum?     


E a família, valha-nos Deus a família? Esse pilar da forma social da religião católica consagrada na devoção rendida à Santa Família de Nazaré? Como pode a Igreja que fala pelo cerrado tradicionalismo do sr. Bispo de Aveiro conciliar o seu zelo por esse organismo nuclear de uma sociedade ordenada por costumes conformes ao governo moral da Igreja com a admissão in extremis, mas admissão, do incesto que, introduzindo na família a promiscuidade das sociedades animais, despedaça o elo espiritual que une os seus membros?

Certamente que não ignoramos que Sua Ex.ª Reverendíssima recrimina com todas as veras do seu robusto tradicionalismo a bestialidade do incesto. Mas, tendo por maior mal o aborto voluntário, mesmo quando não fazê-lo é legitimar o fruto de um crime, ao fisco rigoroso da moral eclesiástica lá foi deixando passar a monstruosidade do estupro incestuoso que vitimou a infeliz criança.

Ora, entre estes Cila e Caríbdis da sua ortodoxia, o sr. bispo de Aveiro devia ter ficado simplesmente calado, no que seguiria lúcidos silêncios de que a Igreja se sabe valer quando metida em palpos de aranha. Mas, abandonado pela inspiração da mudez, acudiu-lhe a saída da recomendação do martírio. E nisto soa a voz de D. Hélder a mostrar-nos uma outra face do cristianismo que quer acabar com o sofrimento.

Em que fica a Igreja? No costumado triunfo das vozes que, esmagando as que negam a oposição entre o céu e a terra, defendem o imobilismo do céu desfasado da terra que se vai transformando?


Espaço Sacral


Não chegam os elos sacramentais que me impuseram na infância para que me considere católica, como ouço dizer aos useiros da frase feita do «católico não praticante» . Se eu fosse realmente católica, praticava. E como não pratico sabe-me a desonestidade dizer que sou católica, só para dar razão à estatística das almas sacramentadas com a ablução baptismal.

Apenas nesta fase agónica das laicizações e secularizações dos poderes que conduziram a humanidade ao faustismo atómico da sua autodestruição, a carência do sagrado é uma problemática que não menos preocupa os que sobre ela reflectem fora dos muros dos sistemas religiosos.  E pergunta-se: terá chegado o momento da Igreja reocupar o espaço sacral que o laicismo burguês lhe roubou?

A multivocidade  dos saberes não consentiria a reposição da Verdade Absoluta sobre a qual a Igreja implantou a sua hegemonia. Depois do Vaticano II, tornou-se claro que a Igreja assim o entendia, admitindo que outras religiões tivessem acesso à Verdade. Apresenta-se, portanto, aos  cristãos eclesialmente reunidos , o grande ensejo cultural de compreenderem que, se a religião institucionalmente perdeu influência nas sociedades industriais, essa mesma decadência origina uma nostalgia de espiritualidade religante, que se ilude com toda a casta de mitos e narcóticos.

Será a Igreja capaz de responder a essa nova necessidade de fé que reclama a participação do Espírito na História? D. Hélder da Câmara quer dizer-nos que sim, ao entender que o verdadeiro cristão tem de humilhar a sua fé à realidade dos dramas que dilaceram os seres humanos e lhes tiram a dignidade. D. Manuel Trindade afasta essa esperança, ao proferir, contra a desgraçada criança que o pai violou, uma sentença ditada por uma fé orgulhosa que não se verga às necessidades do mundo.

Entretanto, eu que cada vez aprofundo mais na poesia um diálogo com o sagrado, numa amplitude pluriteísta exigida pela generosidade poética, ponho-me a reler o poema com que Frei Betto, nos porões da masmorra política, rejeitou o deus dos magistrados, dos generais, dos poderosos, dos ladrões dos pobres e dos matrimónios sem amor:

O Deus da minha fé punha o  [ homem acima da lei e o amor no lugar das velhas [tradições…



Fonte:  -  O Jornal, de 24 de Abril de 1986.   

            
  

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Uma Morta

Eis o mel a escorrer do coração das rosas,
Os perfumes, as cor's, os hábitos amados:
Vós não sorrireis mais à beleza das cousas;
Vossos braços estão doravante fechados.

Nunca mais sentireis, sobre as pálperas mortas,
O lento desfolhar de choros perfumados;
Desfaz-se-vos o peito em tais metamorfoses
Que a tempo chego só de não mais encontrar-vos.

Do ser, que resta? Um nome. E do tempo? Uma data.
Teríeis sido, ao sol, a sombra que eu amara.
No degrau de um sepulcro o meu amor tropeça.

Mais desenvolta, a morte apressou-se a tomar-vos;
Se pensardes em nós haveis de lamentar-nos:
Nós julgamos cegar assim que uma luz cessa.













Autora: Marguerite Yourcenar (1903-1987)

Tradução de:  David Mourão-Ferreira em Vozes da Poesia Europeia III  nº 165 (2003).