terça-feira, 31 de maio de 2011

Livros


“… falar de literatura é falar da vida; da vida própria e da vida dos outros, da felicidade e da dor. E é também falar do amor, porque a paixão é a maior invenção das nossas existências inventadas, a sombra de uma sombra, o adormecido que sonha que está a sonhar. E no fundo de tudo, para além das nossas fantasmagorias e dos nossos delírios, momentaneamente detida por este punhado de palavras, tal como o dique de areia de uma criança detém as ondas na praia, espreita a Morte tão real, revelando as suas orelhas amarelas”


Autora: Rosa Mantero, in A louca da casa

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Crónica


.

Dar ao pagode aquilo de que o pagode gosta?

     Talvez a imagem que eu tenho de Demóstenes seja um tanto equivocada. Há reminiscências que nos ficam da juventude, de leituras avulsas e nem sempre bem informadas, e que vêm a soçobrar, com o travo da desilusão, uma vez confrontadas com um apuramento mais adulto e menos entusiástico dos factos.   
     O que não falta na história são figuras mitificadas. Algumas respeitáveis, outras nem por isso. Creio que tenho direito a  preservar os meus mitos e as minhas fantasias enquanto um qualquer obra túrgida, desmancha-prazeres e desenganadora não me vier, em má hora, parar à cabeceira. 

     Vejo-o sempre, com uma firmeza e uma força de vontade sobre-humanas, a vencer a gaguez, levantando a voz contra  as ondas;  a forçar-se ao recolhimento e ao estudo numa caverna, após ter cortado a barba apenas numa das faces; a recusar, com repugnância e nobre gesto, o ouro de Filipe que corrompeu os seus conterrâneos. E depois, aquela vida toda dedicada a uma causa que considerava nobre e justa, o somatório das desilusões, o triunfo dos seus inimigos, a ingratidão dos concidadãos, a amargura, o suicídio…
     Deixou – dizem – as peças oratórias mais notáveis de toda a Antiguidade, mas os seus objectivos não foram atingidos. Feitas as contas, foi um falhado, um perdedor. Aos taradinhos da “filosofia do sucesso” não convém como herói.
     Um dia – conta uma história que li não sei onde  - Demóstenes discursava  num anfiteatro cheio de gente. O tema era o habitual: a defesa da Grécia contra Filipe da Macedónia. A assistência ria, bichanava, comia, e, de uma forma geral, portava-se alarvemente. Em dado momento, Demóstenes, começou a contar o seguinte: Certo homem precisava de um burro para uma viagem. Um recoveiro, que ia para os mesmos lados, tinha um burro disponível e alugou-lho. Foram andando, andando e, a certa altura, pararam para descansar. O sol era forte, a paisagem de pedras, de maneira que o alugador do burro, sentou-se, aproveitando a sombra do animal. O outro bradou, indignado: “Alto lá! Eu aluguei-te o burro;  não te aluguei a sombra do burro!” Nesta altura da história, todos estavam caladas na assembleia, à espera do desenlace. Demóstenes deve ter feito um trejeito de desprezo e ralhou mais ou menos assim: “Então vocês não têm vergonha? Quando eu lhes falo na defesa da Pátria, estão-se nas tintas. Mal começo a contar uma historieta idiota, voltam-se todos para mim! Pois não lhe hão-de saber a continuação!” Até hoje, e já lá vão dois mil e tal anos…
     Se Demóstenes tivesse aplicado todas as suas capacidades a contar anedotas na ágora, seria provavelmente uma figura muito popular. Talvez chegasse mesmo a ser mencionado por algum dos escritores da época. Correr-lhe-ia a vida fácil e receberia muitos convites. É pouco provável que morresse proscrito, desiludido e amargurado. Não teria, porventura, escrito as “Filípicas”, mas de acordo com os padrões de sucesso hoje em vigor, vagamente inspirados nas profundezas ideológicas de um Dale Carnegie, era capaz de ser considerado um vencedor.
     Ocorrem-me estas coisas, a propósitos de uns ditos e de uns comportamentos que há por aí e se querem muito lisonjeadores dos gostos públicos e das vontades do público. Começo a estar farto disto e incomoda-me ver que ninguém reage contra o arraial de demagogia que se instalou, que se sente bem, e parece não ter tenção de se ir embora. Anda toda a gente a querer contar e a querer ouvir a história do burro…
     Em se tratando de política, mesmo que haja toda a paciência para tolerar os expedientes consabidos da arte da dissimulação, nos termos resignados com que o Código Civil tolera os artifícios dos comerciantes, sobra sempre a mesma fussanga manteigueira e lambedora. Toda a gente diz aquilo que julga que os eleitores querem ouvir: há piscadelas de olho obscenas, acenozinhos, cafunés, carícias equívocas. Figuras…
     O que se passa com o jogo da bola, e com as circunstâncias dele é particularmente deprimente. Os políticos lisonjeiam descaradamente os patrões do futebol, colam-se a eles, dão o dito por não dito, mostram-se perfeitamente incapazes de defender um princípio, de aplicar uma norma, quando pressentem massas ululantes a agitar galhardetes e com intenções de voto mal colocadas.     Qualquer dia o Conselho de Ministro reúne nos estádios, como os outros no Hipódromo… Desde que ouvi uma criatura, de cara afogueada pelo êxtase, berrar “ababaluba!”, “ababaluba!” e a cantar com intuitos insultuosos, “A Mula da Cooperativa”, fiquei por tudo. Acho mesmo que esta ainda á melhor que a da porca a dançar no arame…
     O que se vai passando com grande parte da comunicação social é sinistro. Toda a gente quer é vender. Os noticiários televisivos agridem os cidadãos desprevenidos com aquela bodega dos “fait-divers” e o sensacionalismo próprio da imprensa latrinária. Todos andam a pesquisar o que o pagode quer para vender isso ao pagode. Afinfam-lhe despudoradamente com a porcaria das telenovelas. Interrompem filmes de autor com catervas de reclames. Não há cá culturas, nem literaturas, nem tentativas de ficção nacional, nem nada. Os mandadores são os anunciantes e as televisões uma espécie de fábricas de reflexos condicionados.
     Depois vêm dizer, com toda a candura que isto é a agressividade comercial, que é a concorrência, que há que segurar o pagode, que tem aqueles gostos. Eu gostaria de lembrar que o vocábulo “agressividade” tem a mesma raiz de “agressão”e que a “agressão”, ao contrário do que algumas almas ingénuas possam pensar, é um substantivo com uma forte carga pejorativa. É coisa que não se faz, adversa à sã convivência social e às boas maneiras.
     Aliás, isso da concorrência é de grande excelência no negócio dos sabonetes, mas não está provado que seja conveniente a outros respeitos. Não vos soa mal, falar-se em “competição entre escritores”, como eu já ouvi?
     Aqui há tempos, num festival de cinema, caiu do céu um jovem diplomata estrangeiro que destoava um bocadinho dos circunstantes, quer pelo atavio, quer pelo excesso de à-vontade, quer por uma maneira muito peculiar de ver cinema. Em dada altura, numa daquelas ocasiões de alto significado cultural que consiste em ir bebendo uns copos, no bar, enquanto, lá dentro, as fitas vão correndo, o jovem tomou a palavra e causou embaraços: “Isto agora, a sério: há que tirar o meu chapéu aos filmes do Rambo. Vocês já viram os milhões de milhões que aquilo dá ?”.
     Fez-se um silêncio incomodado, houve quem preferisse sair e dar uma espreitadela contrafeita ao filme em exibição, houve quem fixasse com minúcia os restos do gelo no fundo do copo, até que um barbaças, muito timidamente, respondeu: “Olhe sabe, para ser franco, não acho lá grande espingarda. Dizem que a droga rende mais.” Talvez achem anedota, aliás verdadeira, um bocado excessiva, sugerindo equiparações abusivas entre uma rapaziada entusiástica que quer é ganhar dinheiro, mas lícito, e os outros. É claro que é excessiva. Eu pretendo tirar um efeito com ela. Não é assim que se faz?
     Há limites, há termos. Existem certas realidades humanas a que não se aplicam os critérios do comércio, nem as técnicas das relações públicas. Nem tudo o que os homens produzem é um produto; nem tudo o que é destituído de valor económico é para deitar para o lixo. Não me parece lícito medir um livro, um filme, uma peça de teatro, mesmo um jornal, pelos resultados económicos ou, o que acaba por dar na mesma, pelos gostos imediatos e pelos impulsos aquisitivos das massas.
     Custa-me a perceber que um escritor, ao escrever um livro, tenha a preocupação de se entender mais com o gosto dos leitores, do que consigo próprio. Dir-me-ão que, lá fora, os editores dão conselhos aos autores, e impõem, até, cortes impiedosos nas obras. Pois, e também publicam condensações dos clássicos. Já vi uma edição da “Guerra e Paz” reduzida a um único volume e confessadamente expurgada, em prefácio muito descarado de “tudo aquilo que não interessa ao leitor moderno”.
     Estou a pensar no que seria de “Moby Dick” se tivesse passado por um destes editores, amantes da tesoura… Alguém quer isso aqui?
     A mania do economicismo pode privar-nos de bens culturais que não têm preço. Está a tornar-se numa espécie de fundamentalismo religioso e sectário, a sobrepor-se a todas as referências de princípio, a destruir defesas culturais e a facilitar a progressão de ameaças tão sinistras que ainda não me atrevo a nomeá-las.
     Francamente, detesto as jeremiadas e anda sempre comigo um diabinho que ri das grandes frases, dos gestos grandiosos e dos semblantes sisudos. Mas olhem que os tempos estão maus. Perigosos. Se aparecer por aí algum Demóstenes, é ouvi-lo com atenção, ainda que ele seja gago; e se viesse a ser preciso um dia proferir umas “Filípicas”, muito a sério, era bom que os auditórios não estivessem viciados nas anedotas.
     O Hitler dizia, no “Mein Kampf”, se não estou em erro, que a propaganda política deve descer sempre ao nível dos mais estúpidos. Acho que existe um dever elementar de quem tem o privilégio de escrever, de filmar, de influenciar, por qualquer forma, um público, e que é de nunca facilitar a nivelação por essa rasa.
     Dar ao pagode o que o pagode gosta, pode resultar, qualquer dia, em facturas de preço muito alto, pagas não com dinheiro, mas com a liberdade e com o sangue.
     Falei no Demóstenes e no Filipe da Macedónia. Calhou… Pensando, bem, toda a História dos homens tem sido um pavor.
     Como eu gostaria de estar enganado sobre isto tudo…


Autor:    Mário de Carvalho (escritor)
Fonte:    in LEITURAS Público, 11 de Dezembro 1992 – pág. 7       

   

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Guerra Junqueiro

Selecções da “Gazeta do Sul” - Ano de 1955
“ O que de melhor se publicou em 25 anos”

(II volume)

Quando eu morrer, abram-me o peito,
e desta jaula , onde houve um leão,
tirem – o cárcere era estreito –
Meu velho e altivo coração.

          Depois, sem dó e sem respeito,
          sem um murmúrio de oração,
          lancem-o assim – vai satisfeito ! -
          à vala obscura,  à podridão!

          Para que morra e se desfaça
          no lodo amargo da desgraça
          por quem bateu continuamente,

          como um tambor que, entre a metralha,
          estoira, no fim duma batalha,
          rouco, furioso, ansioso, ardente …


Publicado em 1951 – Ano XXI – nº 1056, (ortografia conforme o original). 


                                    




domingo, 15 de maio de 2011

A Lírica de Luis de Camões



Cá nesta Babilónia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria ;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá,  onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a Deus engana

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti Sião!




  

sábado, 14 de maio de 2011

Homenagem

Aqui jaz pó. Eu não
Eu sou quem fui, raio animado dessa luz celeste
à qual a morte as almas restitui,
restituindo à terra o pó que as veste.

João de Deus


Nota: Este epitáfio encontra-se na lápide do túmulo de Antero de Quental no Cemitério de            São Joaquim emPonta Delgada.


sexta-feira, 13 de maio de 2011

PARABÉNS MANUEL ANTÓNIO PINA

  Poema Inédito 

  À noite com Job, 
  sob o céu de Calar Alto 

Como um Deus incompreensível
confundido pela própria
argumentação
perguntando:  “Onde é que eu ia?”

Como  uma pergunta
a que só é possível responder
com novas perguntas.

Como vozes ao longe discutindo:
“Alguma vez deste ordens à manhã,
ou indicaste à aurora o seu lugar?”

Como um filme
em que tudo acontecesse
na escuridão do espectador.

Como o clarão da noite última
e vazia que abraça pela cintura
a jovem luz do dia.

Manuel António Pina

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Ser Poeta

             
                                     
  Ser poeta é ser mais alto, é ser maior 
  Do que os homens! Morder como quem beija! 
  É ser mendigo e dar como quem seja 
  Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! 

  É ter de mil desejos o esplendor 
  E não saber sequer que se deseja! 
  É ter cá dentro um astro que flameja,
  É ter garras e asas de condor! 

  É ter fome, é ter sede de Infinito! 
  Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... 
  É condensar o mundo num só grito!  

  E é amar-te, assim, perdidamente... 
  É seres alma, e sangue, e vida em mim 
  E dizê-lo cantando a toda a gente! 
 
 
 
                                                     Florbela Espanca
                            

terça-feira, 10 de maio de 2011

Escritos


  Se o nosso espírito pudesse compreender A      eternidade ou o infinito
Saberíamos tudo.

  Até podermos entender esse facto, não podemos saber NADA.

Fernando Pessoa                         
                                                      

segunda-feira, 9 de maio de 2011

De tarde









  DE TARDE 

  Naquele pic-nic de burguesas, 
  Houve uma coisa simplesmente bela, 
  E que, sem ter história e grandezas, 
  Em todo o caso dava uma aguarela. 

  Foi quando tu, descendo do burrico, 
  Foste colher, sem imposturas tolas, 
  A um granzoal azul de grão-de-bico 
  Um ramalhete rubro de papoulas. 

  Pouco depois, em cima de uns penhascos, 
  Nós acampámos, ainda o Sol se via; 
  E houve talhadas de melão, damascos, 
  E pão-de-ló molhado em malvasia 

  Mas, todo púrpuro a sair da renda 
  Dos teus dois seios como duas rolas  ,
  Era o supremo encanto da merenda  
  O ramalhete rubro das papoulas! 

 in  O Livro de Cesário Verde , 1887.

domingo, 8 de maio de 2011

Era Assim

Selecções da “Gazeta do Sul” - Ano de 1955
“ O que de melhor se publicou em 25 anos”

(I volume)
Os TIPÓGRAFOS

de Ferreira de Castro
escritor mundialmente consagrado e jornalista de valor.

São os tipógrafos os detentores de todas as chaves do Alfabeto, são eles que detêm o segredo do princípio e do fim, segredo que remonta ao mundo lendário e que está condensado no Alfa e no Ómega.
E as suas mãos são como casulos, onde todas as ideias se transforma nessas libélulas inquietas que são as folhas de papel impresso, e que vão, através do Mundo, contagiando cérebros e recrutando almas.
E a sua cabeça é um grande arquivo dos vocábulos, decerto menos ordenado do que um dicionário, mas mais vasto do que este, porque nela baila mais do que um idioma e porque ela não é como o dicionário, insensível à música das palavras.
E os seus olhos são como essas  grades que se usavam  nas decifrações dos hieroglifos; são olhos de paleógrafo, que decifram todos os caracteres caligráficos, desde a letra preciosa das poetisas, à emaranhada dos que escrevem muito, dos sábios e dos literatos, de todos que, absorvidos pelo pensamento, se alheiam das evoluções da pena através da estepe do papel em branco.
E os seus ouvidos são como antenas que interceptam, quase instintivamente, o ritmo dos vocábulos,  a plástica da prosa e por isso, quando surge um inovador, que altera a música dos períodos, as provas vêm  povoadas de “gralhas” e só depois do tipógrafo haver constatado que se trata verdadeiramente de um inovador, ele deixa de colocar as vírgulas convencionais e segue a nova melodia.
E o seu espírito, sob o perene contacto  com o pensamento dos que escrevem, enche-se de fulgor literário, mobila-se com todos os troféus da cultura  e é como esses rios onde se lavam as areias auríferas e em cujo fundo ficam sempre resíduos preciosos.
E assim, muitas vezes, são mais ricos de sapiência do que muitos dos que escrevem e então notam modestamente, sem desejos de se salientar, os erros dos originais que seus olhos vão seguindo ou disparam sobre o escritor incipiente as  flexas*  da ironia, porque sentem que o Alfabeto é afrontado por mediocridades mascaradas com os mantos raptados ao verdadeiro  Valor – e eles, volvidos para o culto dos vocábulos, não podem chancelar sem desdém aquele ultraje.
Outras vezes, sob a magia dessas folhas de papel escrito que encerram mundos ignorados de beleza e que eles decifram pacientemente, como se descobrissem o segredo de um tesouro remoto, sua sensibilidade enche-se de vibração, sua alma acorda para um novo rito – e demandam essas mesas anónimas sobre as quais  aos célebres privilegiados é grato debruçarem-se, em meditação; essas mesas que são o cadafalso da vida prosaica, mas que são também o altar da vida espiritual, o altar da Literatura.
E surgem como poetas notáveis, como prosadores gloriosos, como jornalistas célebres, duplamente intelectualizados, porque antes da sua pena traçar os signos do Alfabeto, suas mãos o acariciaram e por ele foram osculadas.
E são muitos, formam legião, os intelectuais que, nimbados por autêntico valor, têm saído para a Celebridade, desde essas tipografias onde se fecunda a glória de tantos medíocres. Porque os tipógrafos são, afinal, os verdadeiros fecundadores da glória, são eles que mantêm, como uma lâmpada eterna, e que espalham, como um cortejo de estrelas, o nome dos literatos e dos sábios, e que fazem esse nome ecoar em todo o Mundo, ser escutado por todos os ouvidos, ser lido por todos os olhos. São eles,  com o seu trabalho anónimo, os verdadeiros propulsores da Celebridade e da Glória, que eram difíceis e raras quando as suas mãos ainda não percorriam esses favos de chumbo  que são as caixas de tipo.
E os seus frágeis braços são alavancas da Civilização, pois é devido a eles, que fazem difundir e ser compreendidas, seguidas,  ampliadas e aperfeiçoadas as teorias científicas, as invenções  audaciosas, as descobertas surpreendentes, que os séculos que precederam a Gutenberg  valem mais para a humanidade do que todas as dezenas  de séculos que a Gutenberg antecederam .
E basta pensar no que seria o mundo contemporâneo se os sábios e os escritores não pudessem difundir as suas investigações e as suas criações mais além dos manuscritos, para se compreender a acção dos tipógrafos adentro do Progresso – para se compreender o seu papel na epopeia do trabalho.
E os novos surtos do Progresso são por eles sempre seguidos e assim as suas mãos vão perdendo esse gesto de ave que pica uma romã negra, para se tornarem mais lestas, mais modernas, ao teclar as grandes “linotypes”, as complicadas máquinas que vêm substituir o braço, no culto do Alfabeto.
E trabalham, trabalham na penumbra das oficinas e ali são como sacerdotes do Génio Humano – até que a tuberculose, que é o nume da fatalidade da nobre profissão, lhes torne cor de marfim a parte das mãos que os tipos não enegreceram.

*de acordo com o texto original
                                                             “Gazeta do Sul” nº 104 – Ano III (1932)    

sábado, 7 de maio de 2011

inquisidor


São seios como venenos
São pernas com meias pretas
São os postais obscenos
Que fechamos nas gavetas

São as vigílias eróticas
Com que o demo nos assalta
São solteironas neuróticas
E o amante que lhes falta

São os truques insolentes
Dum prestidigitador…

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Era Assim

Selecções da  “Gazeta do Sul”- Ano de 1955
“o que de melhor se publicou em vinte e cinco anos”  
 (I volume )

Como quero partilhar convosco, algum do acervo bibliográfico que faz parte. das minhas relíquias interiores, de quando em vez publicarei algo, que me alimenta. E neste caso:


  GUTENBERG  


  Oh filho de Mayença 
  Falado em toda a parte, 
  Oh inventor da arte 
  Que a todas perpetua!  
  Oh inventor da Imprensa, 
  - Luz da humanidade! 
  Justa celebridade 
  E pura glória a tua!

João de Deus (séc. XIX)

quinta-feira, 5 de maio de 2011

E por vezes



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos.  E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em tantos anos.
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes e por vezes  ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.


David Mourão Ferreira (1973)



quarta-feira, 4 de maio de 2011

Tal Qual os Fazem...






         

          São loucos os poetas, são!
          Madrugam
          sem terem conciliado a natureza
          que também são.

     Porque a noite lhes quis não se deitaram
     e divagaram
     até á lividez da aurora.
     Quando voltam a casa têm medo
     que a natureza
     os deite à rua.

     Iludem só então o que neles não mente:
     a fecunda energia
     de palavras-madrugada.
     Dormem todo o dia.

          São homens preguiçosos
          os poetas.

     Quando anoitece acordam
     e julgam
     que o sol os alumia.

     Às vezes, caem de borco.

     Acordam então cedo,
     com o sol nos olhos.

          Celebram intensa
          madrugada.

Ruy Cinatti  (1973)