sábado, 30 de abril de 2011

Poema cansado de Certos Momentos


Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face de justo

para os homens cuspirem o fel das veias,
só um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.

Mãe! aqui me tens,
restos de mim.
Guarda-me contigo agora,
que és tu a minha justiça e o exílio
do perdido e do achado.
Guarda-me contigo agora
e adormece-me as feridas
com as guitarras do fado.

Mas caberá no teu regaço
o fantasma do perdido ?

                               Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"





 



                                                                        

 

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Para Sempre

  Por que Deus permite 
  que as m
ães vão-se embora?
  M
ãe não tem limite,
  é tempo sem hora,
  luz que n
ão apaga
  quando sopra o vento
  e chuva desaba,
  veludo escondido
  na pele enrugada,
  água pura, ar puro,
  puro pensamento. 
  Morrer acontece
  com o que é breve e passa
  sem deixar vest
ígio.
  M
ãe, na sua graça,
  é eternidade.
  Por que Deus se lembra
  — mistério profundo —
  de tir
á-la um dia? 
  Fosse eu Rei do Mundo,
  baixava uma lei:
  M
ãe não morre nunca,
  m
ãe ficará sempre
  junto de seu filho
  e ele, velho embora,
  ser
á pequenino
  feito gr
ão de milho.

 Carlos Drummond de Andrade 















quinta-feira, 28 de abril de 2011

No sorriso louco das mães




No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca

da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

Herberto Helder

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Mãe

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!



Miguel Torga, in 'Diário IV'

terça-feira, 26 de abril de 2011

HOMEM


     Inútil  definir este animal aflito.
     Nem palavras,
     nem cinzéis,
     nem acordes,
     nem pincéis
    são gargantas deste grito.
            Universo em expansão.
           Pincelada de zarcão
          Desde    mais    infinito    a    menos    infinito.

                                                       
                                                         António Gedeão



segunda-feira, 25 de abril de 2011

Liberdade



Ser livre é querer ir e ter um rumo
...

                                                          Armindo Rodrigues


Quer pouco: terás tudo,
Quer nada:  serás livre.

                      Ricardo Reis



   O que  sonhei  cabe  nas  tuas  mãos
   gastas  a  tecer  melancolia :
  um  país  crescendo  em  liberdade ,
  aureolado  de  trigo  e  alegria .
                                    
                                                   Eugénio de Andrade





domingo, 24 de abril de 2011

Noite-Pétala



  Posso estar aqui 
  eu posso estar aqui perfeitamente pobre 
  um círio me acendi espora aguda 
  o vento ritmo negro assassinou-o 

  posso estar aqui 
  - o musgo é lento como a sombra - 
  e sei de cor a voz cega das canções 
  (viola de silêncio acorda-me) 

  que eu posso estar aqui perfeitamente pedra 
  insone 
  e um longo segredo impessoal 
  bordando a minha solidão 


Luiza Neto Jorge - 1960

sábado, 23 de abril de 2011

o caderno de Saramago


               
Almodóvar

               



C
heguei tarde à movida, quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rímel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e as suas tristezas. Não quero dizer que as movidas sejam tristes por definição, o que eu digo é que têm de se esforçar muito para que não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: "Que faço eu aqui?" Atenção estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para movidas e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da movida madrilena, a perguntar à sua pequena alma  (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis). "Que faço eu aqui?" A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi Volver enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: "Tocaste a beleza absoluta." Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.

Devo concluir. De uma forma de certo inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da movida.



Autor:   José Saramago
Fonte:   Diário de Notícias, 5 de Agosto de 2009.

                                    

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Os dóceis animais

  Com os juncos 

  Elas crescem, as crianças. 
  Crescem com os juncos,
  com os mastros.
  Crescem no meu coração esburacado.
  Só as crianças não morrem.
  E os gatos.



                                                        



  Despedida 

  Junho chegara ao fim, a magoada
  luz dos jacanrandás, que me pousava
  nos ombros, era agora o que tinha
  para repartir contigo,
  e um coração desmantelado
  que só aos gatos servirá de abrigo.





Autor : Eugénio de Andrade

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Lavoisier

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma


Autor: Carlos de Oliveira (1941)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Diálogos

...
Foi então que apareceu a raposa.
- Olá, bom dia! -  disse a raposa.
- Olá, bom dia! - respodeu educadamente o principezinho, que se virou para trás mas não viu ninguém.
- Estou aqui, debaixo da macieira - disse a voz.
- Quem és tu? - perguntou o principezinho - És bem bonita ...
- Sou uma raposa - disse a raposa.
- Anda brincar comigo - pediu-lhe o principezinho. - Estou tão triste ...
- Não posso ir brincar contigo - disse a raposa. - Ainda ninguém me cativou ...
- Ah! Então desculpa! - disse o principezinho.
Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:
- "Cativar" quer dizer o quê?
- Vê-se logo que não és de cá - disse a raposa. - De que andas tu à procura?
- Ando à procura dos homens - disse o principezinho. -
"Cativar" quer dizer o quê?
...
...
... - Ando à procura de amigos. "Cativar" quer dizer o quê?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa . - Quer dizer "criar laços" ...
- Criar laços?
- Sim, laços  - disse a raposa. - Ora vê: por enquanto tu não és para mim senão um rapazinho perfeitamente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas
de mim. Por enquanto eu não sou para ti senão uma raposa igual a cem mil raposas. Mas, se tu me 
cativares, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E eu também passo a ser única no mundo para ti ...
...
...

Livro:    O Principezinho
Autor:     Antoine de Saint-Exupéry




                                                                                                           
                                         


terça-feira, 19 de abril de 2011

Identidade


Preciso ser um outro
para ser eu mesmo


Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta


                                       Sou pólen sem insecto


                                       Sou areia sustentando
                                       o sexo das árvores


                                       Existo onde me desconheço
                                       aguardando pelo meu passado
                                       ansiando a esperança do futuro


                                       No mundo que combato
                                       morro
                                       no mundo porque luto
                                       nasço.


M
ia Couto   (Setembro 1977)



segunda-feira, 18 de abril de 2011

Balanço

Tantas vezes me perdi sem labirinto.
Tantas outras sem bússola me encontrei.
Tanto sim ouvi, nítido e distinto.
A morrer em não, porque os desgastei.

Confiei segredos à tarde serena.
Devolveu-mos ela, espalhados no vento.
Fui regato fresco cantando em avena
e fui leito seco em caminhar lento.
Soprei mil pétalas em imaginário rosto,
desejando manhãs sem madrugadas.
Afastei as sombras rubras ao sol posto
e amei noites de estrelas pontilhadas.
Carreguei sobre os ombros tanto peso!
Sucumbi aos arranhões de tanta garra!
Mas alcandorei castelos, inventei defeso.
Teci loucos sonhos de beleza rara...

Lutas que perdi... guerras que ganhei,
são ela por ela, igual o resultado.

Prende-me à vida aquilo que não sei.
Esperança num amanhã ignorado.

Jesus Varela
                                                                                   


                                                                               

domingo, 17 de abril de 2011

Já Bocage não sou ...

  Já Bocage não sou!... À cova escura 
  Meu estro vai parar desfeito em vento ... 
  Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento 
  Leve me torne sempre a terra dura. 

  Conheço agora já quão vã figura 
  Em prosa e verso fez meu louco intento. 
  Musa... Tivera algum merecimento, 
  Se um raio de razão seguisse pura! 

  Eu me arrependo; a língua quase fria 
  Brade em alto pregão à mocidade, 
  Que atrás do som fantástico corria: 

  Outro Aretino fui... A santidade 
  Manchei!... Oh! se me creste, gente impia 
  Rasga meus versos, crê na eternidade! 


sexta-feira, 15 de abril de 2011

29 Outubro 2010


O Canto do roussinol
Há muito que todos os cair da noite eram iguais, o sussurrar do roussinol nas silvas, embora lento, tinha reflexos de luz intensos, fazendo com que o caminho ficasse mais leve, pois os pés ao serem iluminados, saltitavam compondo a melodia que os obrigava a sentir que a noite, embora escura, dava sempre lugar a um novo dia, onde havia sol e esperança…
Assim foi durante um tempo, até que o anoitecer tomou uma forma hedionda, agigantou-se e o roussinol assustado pipilou baixinho – já não posso cantar - ficou temeroso com o que viu, e o passante perdeu-se … com as pernas entorpecidas não conseguiu encontrar a estrada!!!
MariaJoséPortugal
Cessaram os passos. O Sol, os sorrisos e agressões dos sons, também pararam. Recorre um silêncio ameaçador, porque pronúncio dum nada anunciado na expectativa perdida. Impõe-se a ilusão dum tempo parado em certeza de contínuo fluxo, sem pausa nem regresso…
Na vaga perdida de uma eternidade ou dum só momento, o roussinol, mesmo a desoras, parecendo sem motivo, levantou o seu trinado, triste mas vivo. Em melodia de glória à vida, as partículas do ar, voaram intrépidas até ao ouvido, meio ensurdecido do caminhante.
O recanto sombrio sacudiu-lhe a presença. O caminho acenou convidativo. Do mais íntimo de si evolou-se um suspiro conformado na única certeza de que o mais importante era continuar. E milagrosamente, das sombras vagas, destaca-se a nitidez do percurso.
Enquanto prosseguia, o canto do roussinol, como despertador já sem uso, foi-se desvanecendo ao longe…
MariadeJesusPinto.


quinta-feira, 14 de abril de 2011

Ofício de Amar

  já não necessito de ti 
  tenho a companhia nocturna dos animais e a peste 
  tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras 
  galáxias, e o remorso 

  um dia pressenti a músca estelar das pedras, abandonei-me ao  
  silêncio 
  é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração 
  não, não preciso mais de mim 
  possuo a doença dos espaços incomensuráveis 
  e os secretos poços dos nómadas 

  ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto 
  deixei de estar disponível, perdoa-me 
  se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo 


                                                                                         Al Berto