terça-feira, 27 de março de 2012

Dia Mundial do Teatro



Neste dia, quero recordar dois vultos maiores do Teatro em Portugal, infelizmente já desaparecidos, e que acompanhei ao longo das suas Vidas.
São eles:












Mário Barradas




  Dizia Ele àcerca do teatro,  no ano da sua morte, numa entrevista à revista Cena's,  quando  lhe perguntaram ... qual é o papel de um Teatro Nacional?

 "É a preservação da memória e da identidade cultural de um país. No entanto, também é verdade que eu tenho um grande diferendo com o teatro português. Deve ser culpa minha, mas acho que lhe falta alma, uma dinâmica própria, a força que faz os grandes autores. Coisa que não temos. Houve alguns, como o Raúl Brandão ou o José Régio,  que podiam ter sido grandes dramaturgos... Escreveram duas ou três peças, o resto é romance ou poesia. Ora, o teatro é completamente ciumento. É a mais ciumenta das artes, porque não deixa espaço para mais nada."  








quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia


Neste Dia quero manifestar neste  cantinho, homenagem a dois grandes vultos da Arte Poética Portuguesa - um falecido aos quarenta e oito anos, recordá-Lo-emos como um editor extraordinário em mais de duas décadas da Assírio & Alvim, que nos deu a conhecer a poesia como ponte entre os vários povos e os tempos de sempre, ou seja o mundo num livro, editando em 2001 - ROSA DO MUNDO - 2001 poemas para o futuro. Estou a falar, de Manuel Hermínio Monteiro, a  quem o Prémio Camões de 2011 dedicou este Poema:
                   

Sétimo Dia


Voltámos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.

A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguêmo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.

Ainda ontem estávamos sózinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez .
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.


Manuel António Pina, em 25.06.01










Fonte :- MILFOLHAS, 30 de Junho 2001 PÚBLICO






O outro grande Senhor é Rómulo de Carvalho/António Gedeão - O Professor-Poeta (nasceu a 24 de Novembro de 1906 e faleceu a 19 de Fevereiro de 1997), transcrevo um texto do livro das suas memórias pessoais, que iniciou aos 80 anos e terminou pouco antes do falecimento.

O manuscrito foi encontrado no seu espólio  pela viúva, também escritora,  Natália Nunes que nem sabia da sua existência. Escolho este texto porque o acho pertinente. 





"... JOVENS DE ONTEM, JOVENS DE HOJE


Os meus saudosos amigos. Havia entre nós a máxima intimidade, a máxima confiança e, contudo, dir-se-ia que éramos cerimoniosos uns com os outros. Tínhamos atenções mútuas, delicadezas de trato, e até rodeávamos de palavras cautelosas certas conversas próprias de rapazes acicatados pelos impulsos eróticos. A culpa era toda minha porque os escolhi à minha imagem e semelhança e neles procurei os meus virtuosos defeitos. Contudo tenho a impressão de que a relação entre todos, amigos e não amigos, seguia código semelhante.

Hoje, nesse aspecto, tudo se aviltou, querendo com isto dizer que a relação entre as pessoas, jovens ou não, se degradaram, isto é, baixaram de grau, seguindo determinada escala de valores em que cada valor tem o seu grau. Estou a querer fugir à inutilidade de afirmar que o passado era melhor. Era diferente, e reporto-me à escala de valores desse passado quando o comparo com o presente.

A simples apresentação exterior de um jovem já o dispõe a um comportamento cívico diferente do do meu tempo. O capitalismo americano inundou o mundo de calças e blusões de ganga, tecido que, no meu tempo, era do mais baixo preço e só usado por miseráveis. Até era muito cantado o Fado de Ganga, faduncho que ia à cena num teatro de revista e cuja personagem que o cantava fazia o papel de carroceiro, homem que lidava com carroças e com burros que as puxavam. Para o capitalismo americano, agressivo, insolente e implacável, a ganga dos trajes ainda não bastou para atrair suficientemente os compradores potenciais que constituem o universo dos jovens. Quiseram dar-lhe um ar mais degradado, mais reles. E então apareceram no mercado as calças e os blusões de ganga já com nódoas, com manchas que simularam o uso, e delidos nas costuras. Foi um êxito. Aquilo, vestido dava o ar de pessoa vadia, que tinha passado a noite estendida num degrau de uma escada, que andava a comer sopa numa lata, que era um boémio, um sonhador, um ser independente que não tinha que dar satisfações a ninguém. A isto acrescentavam o calçado que, normalmente, já não é de cabedal, nem de pano, que nunca se limpa nem se lava, e dá um ar desleixado que é tentador. As raparigas seguiram o mesmo modelo. Para estar de acordo com o traje a linguagem usada pelos jovens tem de ser desbragada, porque sempre houve uma linguagem para cada traje. Digo o que se passa, mas não o que está bem ou o que está mal. Nós não éramos desleixados na nossa apresentação. Saíamos de casa muito escovadinhos, as nossas mães vigiavam a nossa limpeza, mandavam-nos engraxar os sapatos e puxar-lhes brilho. Por isso tínhamos outra maneira de falar, de gesticular, de nos aproximarmos dos outros e dos acolhermos. Todas as coisas estão relacionadas entre si. Estas e outras. Se um sujeito de casaca e sapatos de polimento encontrava algum conhecido na rua, tirava o chapéu, dobrava-se pela cintura e informava-se da saúde de Vossa Excelência. Se era um senhor de fato completo e gravata, desbarretava-se com moderação, baixava a cabeça e perguntava à pessoa sua conhecida como tinha passado. Se era um gajo de «blue jeans» (nome dado às calças de ganga americanas), voltava a cabeça e mandava-nos bugiar. Tudo sem as suas regras, até a falta delas."

Como Poeta, transcrevo um Poema de 1961, que se encontra publicado no seu livro Máquina de Fogo e que se intitula : 


  Poema do autocarro 



  Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro 
  e sem lhes perguntar porque maltratam. 
  Eu sei porque é que morro.   
  Eles é que não sabem porque matam. 

  Eles são pedras roladas no caos,  
  são ecos longíquos num búzio de sons. 
  Os homens nascem maus. 
  Nós é que havemos de fazê-los bons. 

  Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro, 
  um rosto onde possa descansar os olhos olhando,  
  um rosto como um gesto suspenso 
  que me estivesse esperando. 









Fonte  : JL, Jornal de Letras, Artes e Letras de 22 de Novembro de 2006 no
Centenário do Professor.
                        




   

domingo, 11 de março de 2012

Crónica




... COM JOSÉ CARDOSO PIRES



     Pois é, meu velho, foste sem me dizer nada. Ficaste para aí a dormir ...              sempre a dormir... até chegar ao sítio onde jamais se acorda. Nunca mais disseste: - Então meu rapaz! Trazias, quase sempre, os olhos cheios de mar e, muitas vezes, secaste os meus nas tuas palavras quando eles estavam cheios de lágrimas. Por acaso não viste, por aí, a barca do Gil? Não sei se ela ainda está em condições de navegar.

     Há barcas que são eternas. A barca do Gil eternizou-se nas palavras; no outro lado das margens do tempo; na denúncia do mal para transportar o bem; nas últimas velas de navegar pelo céu.

     Pois é, José amigo: - Esta noite sonhei que Mestre Gil te tinha dado uma barca. Uma daquelas que Deus lhe dera outrora para levar as almas. Há muito que as barcas chegavam da Terra quase vazias; as dos adultos... que para os inocentes, elas não chegavam. As dos inocentes tinham asas; não precisavam de velas; erguiam-se no ar pelas correntes quentes, até aos pés de Deus. Depois, com a barca que te dera Gil Vicente, vieste à Terra muitas vezes... Duma delas disseste-me: - Não queres vir?

     Acordei precisamente quando ia a entrar na barca. - Não querias mais nada, perguntei-me! E ali fiquei pensando... ali, no sofá de molas partidas onde as viagens dormitam e saltam para a escrita, com as letras a ferverem do lado de cá do sonho; aquele lado que já todos conhecem; o único com possibilidade de descrever o outro, o lado das profundezas, o lugar  do regresso a Gil Vicente onde os amigos se vão perdendo pelas cinzas da saudade e, de vez em quando, voltam à terra pela memória no nevoeiro das tardes ou nas noites de insónia.

     Há pedaços de tempo para fazer o Tempo; aquele cujos segundos nos leva à eternidade; a centelha de pó a reluzir no Sol; um retalho da alma no mais ou no menos infinito... E para além? Sim!, para além do Infinito?

     Ficam na história as lembranças impressas nas entrelinhas dos livros e as conjunturas dos homens naquilo que talvez fosse...

     Desculpa, Cardoso Pires! Mas não me posso esquecer daquele dia, ou antes, quase noite, quando, numa visita ao Castelo de S. Jorge, me disseste: - Mestre Gil, menino! Tens nele as "memórias da tua democracia": a minha democracia nas palavras verticais  nem sempre possível, num mundo de homens onde a aldrabice, a vigarice e a falta de responsabilidade imperam. Saramago ia receber um prémio da Associação Portuguesa de Escritores. Quase no fim viemos embora. As estrelas, dependuradas no veludo da noite, faziam caretas de cores, brincando com o infinito; uma brisa levemente fresca, acordava figuras com oitocentos anos de história; figuras de nevoeiro e lendas que o tempo, em grande parte dos casos, tornou realidade... a nossa realidade. Separei-me de ti, lá para as bandas da Sé. Quase não falámos. O silêncio tinha -nos dito tudo!

     Enfim! Agora que passaste para além do "Túnel"; agora que esqueceste os Companheiros de outrora como fizeras à matemática para seguires o Mar; agora que, com certeza, já encontraste Stº Agostinho e lhe pediste para escutar a tua nova obra; agora onde não há praia nem cães e as baladas são celestes; agora onde o grasnar dos corvos não acontece e os heróis não rendem; agora... vem-me dizer, pela madrugada, ao meu ouvido esquerdo que ainda ouve, porque é que os homens são assim!


Fonte :  -   Artes & Artes, jornal de estudos, artes e letras nº 16 de     
                             Janeiro de 1999,  crónica do Escritor ULISSES DUARTE.


  O Poeta faria hoje, 11 de Março de 2012, oitenta e nove anos...

                                                                                                                             
 há cinquenta, que  a "Menina de Olhar Triste", vê partir a "barca" do Gil.



terça-feira, 6 de março de 2012

Crónica de António Lobo Antunes







   Quero ser filho da puta


         UM CRÍTICO teatral francês dizia que uma peça era má quando lhe começava a doer o rabo. Qualquer julgamento deste género tem o defeito de ser um pouco rectroactivo e talvez lhe prefira a perspectiva do pianista Rubinstein, que afirmava nunca assistir ao concerto de um colega porque, no caso de ser ruim, perdia tempo e, no caso de ser bom, saia de lá furioso. Dos exemplos citados poder-se-á inferir estar a crítica directamente relacionada com as hemorróidas e o narcisismo? E a autocrítica? O pintor Bonnard visitava os museus com uma paleta escondida na pasta e sempre que o guarda se distraía retocava à pressa os seus quadros; torna-se difícil um escritor ir às livrarias  barbear  adjectivos nos exemplares da montra. O acto de julgar em arte é muito complexo: Nabokov só louvava escritores medíocres e reduzia Hemingway, Conrad e Faulkner  a mentecaptos, no que se parecia com o tio que diante de um Picasso, levantou ao tecto as mãos indignadas
        -  Melhor que isto fazia eu em cinco minutos.
        e a minha porteira tem na sala, no espaço que os bambis de louça e as bonecas deixam livre, o Cristo de Velasquez num calendário-reclame  de uma oficina de bate-chapas pelo motivo irrespondível
        -  Que até parece que vai sair da parede a conversar com a gente, coitadinho
        critério tão seguro que se aplica aos caniches de quem os donos afirmam que só lhes falta falar.
        Não me preocupa que a um crítico lhe falte falar: preocupa-me que lhe falte ouvir. Um quadro, um filme, um livro servem para a gente aproximar a orelha e escutar. E se por acaso o quadro, o filme e o livro forem bons, escutamos tanto que não há espaço para palavras nossas. As únicas possíveis são as do caseiro a quem um coleccionador de que não me lembra agora o nome mostrou uma estatueta preciosa. O homem ficou a olhá-la que tempos, assombrado, girando a boina na mão, até soltar uma palmada imensa na coxa
        -  Ai o grande filho da puta
        que constitui no meu entender o melhor elogio que se pode fazer a um artista. Uma das pessoas com o gosto mais seguro que conheço é o meu pai: em vez de impingir teorias sobre os seus autores preferidos, lia-os em voz alta para os filhos
        ( - Reparem)
        sem os limitar nem os engrandecer: apenas mostrando-os, apenas ensinando-nos a reparar, não com palavras suas mas com as palavras deles. No fim fechava o livro, fazia-se um silêncio quieto, e quando o silêncio com o
        -  Ai o grande filho da puta
        lá dentro acabava, eu tinha a certeza de ter tocado naquela alegria para sempre do verso de Keats.
        Para mim, um bom crítico é assim: alguém que não limita a liberdade de apreciar (ou não apreciar) com o imperativo peso horrível do seu gosto pessoal em cima da minha cabeça, porque desse modo corremos o risco, como dizia Wilde, de os críticos serem ilegíveis e os autores não serem lidos. Talvez que nada disto seja muito importante: lembro-me de uma ocasião, há anos e anos, ter ido com Jorge Amado a casa de um escritor, onde só estavam escritores, só se falava de escritores e de livros, e ninguém tinha coragem de ir embora pela certeza de que ficariam a falar mal nas suas costas. Ao fim de um bocado, o velho levantou-se e pegou-me no braço:
        -  Vamos embora, miúdo. A literatura é como o amor: a gente faz, não fala.
        Acho que não aprendi muito com os romances de Jorge Amado (os romances também não são para se aprender seja o que for), mas aprendi bastante com a sua atitude: o suficiente para ficar a saber da intimidade do acto do amor e do acto da literatura, o suficiente, pelo menos, para não me ralar se falarem mal nas minhas costas. E há sempre a esperança, não é, de que alguém ao acabar de me ler bata uma palmada imensa na coxa
        - Ai  o grande filho da puta
        e durante cinco minutos garanto que fico regalado.

Fonte :   Público Magazine, 24 de Setembro de 1995.