quarta-feira, 13 de junho de 2012

MEMÓRIA ...

«Memória é como um sonho virado ao contrário»  *





      Em 2005, um Grupo de Professores do Alto Minho, pediu a Álvaro Cunhal que imaginasse um Portugal de Abril para ser contado às crianças do pré-escolar.


     Assim, nasceu um conto infantil inédito, da autoria do líder histórico dos comunistas portugueses, que a VISÃO traz à luz do dia, com o contributo dos que idealizaram à época, o projecto.


OS BARRIGAS E OS MAGRIÇOS

Álvaro Cunhal


Esta história que vos vou contar passou-se há muitos anos, ainda nenhum de vocês tinha nascido.
Foi num país em que havia uns homens conhecidos como os Barrigas e outros conhecidos como os Magriços.
Os Barrigas não tinham este nome por serem todos barrigudos, mas por comerem tanto, tanto, tanto que nem se percebia onde cabia tanta coisa.
Houve até quem dissesse que para lá caber tanta comida o corpo dos Barrigas lá por dentro devia ser tudo estômago.
Os Magriços também não se chamavam assim porque tivessem todos nascido magrinhos. Mas porque, em certas épocas do ano, os Barrigas não lhes davam trabalho, nada lhes pagavam, e passavam tanta fome. E então, sim, ficavam tão magrinhos, só pele e osso, magrinhos como carapaus secos.
Os Barrigas tinham muitos campos, muitas terras, tão grandes, tão grandes, que de uma ponta nem com binóculo se via a outra ponta.
Os Barrigas tinham também moinhos para moer farinha, lagares para moer a azeitona e fabricar azeite.
Nesses campos, nesses moinhos, nesses lagares, trabalhavam os Magriços. Mas recebiam tão pouco, tão pouco, que não lhes dava para comerem eles, suas mulheres e seus filhos.
E, ainda por cima, eram mesmo maltratados, como se fossem bichos.
Uma vez, um Magriço pediu ao Barriga seu patrão que lhe pagasse mais pelo seu trabalho. E sabeis vocês o que lhe respondeu o Barriga? O Barriga riu-se e respondeu: «Se não tens pão, come palha.» Isto não se diz a ninguém. São palavras feias de um homem mau, não vos parece?

Outra vez, um outro Magriço que trabalhava num lagar procurou o Barriga e disse-lhe «Senhor Barriga, eu fabrico cântaros e cântaros de azeite, mas o senhor fica com todo e eu não tenho nenhum azeite para temperar as batatas». E o Barriga deu-lhe uma resposta tão feia, tão feia, que nem sei se aqui a diga. Mas sempre a digo. O Barriga respondeu: «Se não tens azeite para temperar as batatas faz-lhe xixi por cima.»
Disse isto com palavras ainda piores, mas foi isto que disse.
São também palavras feias de um homem mau, não vos parece?
Isto eram, porém, palavras feias de homens maus, mas as coisas eram ainda piores. Porque os Barrigas tinham ao seu serviço soldados armados e quando os Magriços protestavam - um, por exemplo, disse ao Barriga: «O senhor é um homem mau» - eles diziam aos soldados para prender os Magriços, meterem-nos presos nuns buracos a que chamavam prisões. Isto e ainda pior.

Que fazer? Se algum de vocês fosse um Magriço, o que fazia? Foi um Magriço que se lembrou. Tinha um amigo que era soldado e disse-lhe assim: «Olha lá, amigo, achas bem isto? O que os Barrigas te mandam fazer?» O soldado era bom rapaz e disse: «Eu estou de acordo contigo. Mas que posso eu fazer?»
Lembrou-se então de falar com os outros soldados e todos pensaram que era preciso ajudar os Magriços a libertar-se de tal situação
Foi então que os Magriços se juntaram todos, procuraram o mais barrigudo dos Barrigas e lhes disseram:
«Isto não pode continuar assim. O senhor tem tanta terra, que muita está abandonada. Nós vamos trabalhar para lá, cultivá-la e o que produzirmos é para nós.»
O Barriga nem queria acreditar. Começou logo a gritar: «Estais malucos ou quê? Se se atreverem a isso, varro-vos a todos a tiro!»
Mas os Magriços não tiveram medo, foram para essas terras abandonadas, começaram a limpá-la de mato para depois cavarem e semearem.
Os Barrigas protestaram. chamaram nomes aos Magriços, ameaçaram de os mandar matar. Mas o pessoal não se assustou.
O mesmo sucedeu por toda a parte e os Magriços, com o seu trabalho, desenvolveram rapidamente a agricultura.
Asseguraram trabalho a todos que dantes passavam metade do ano sem trabalho e sem pão e ganharam para que ficasse a juventude que fugia.
Semearam  terras que estavam abandonadas. Produziram e venderam trigo, tomate, compraram vacas e ovelhas e assim produziram leite e queijo. Arranjaram máquinas agrícolas.
O que fizeram os Barrigas? Chamaram os soldados e deram ordem: «Vão lá e corram esses gajos a tiro!»
Os soldados foram, lá isso é verdade. Mas não deram tiro nenhum e até deram os parabéns aos Magriços pelo trabalho que estavam a fazer.
E o mesmo se passou nos moinhos e lagares de azeite.
Os Magriços tomaram conta de uns e de outros e quando apareceram os Barrigas a protestar, eles disseram: «Não lhe queremos mal, senhor Barriga. O senhor leva a farinha e o azeite de que precisa para a sua familia. E nós levamos o resto para as nossas.»
E o mesmo se passou nas fábricas dos Barrigas e em toda a parte.
Passou-se tudo isto na Primavera. Calhou começar no dia 25 do mês de Abril. Por isso, quando se fala no 25 de Abril é dessa revolta dos Magriços e do que foram capazes de realizar que se fala.

E para acabar a história, quero fazer-vos uma pergunta.
A mim, já me têm perguntado: «Ouve lá, se tivesses vivido nessa época, com quem estarias tu? Com os Barrigas ou com os Magriços?» E eu respondo: com os Magriços, claro!
E penso que conhecendo vocês esta história, dariam a mesma resposta.

7 de Junho 2000.

Fonte: VISÃO, 10 de Novembro 2005.


No dia 13 de Junho de 2012, data do 7º ano do Seu falecimento, aqui fica a minha modesta homenagem.


* frase de uma personagem do romance de BAPTISTA-BASTOS - viagem de um pai e de um filho pelas ruas da amargura - 1ª edição: Maio de 2008 da Oficina do Livro.