quarta-feira, 31 de agosto de 2011

PABLO NERUDA



Nixon, Frei e Pinochet
até hoje, até este amargo
mês de Setembro
do ano de 1973
com Bordaberry, Garrastazu e Banzer
hienas vorazes
da nossa história, roedores
de bandeiras conquistadas
ao preço de tanto sangue
de tanto fogo
atascados nos seus latifúndios
depredadores infernais
sátrapas mil vezes vendidos
mil vezes vendilhões, por conta
dos lobos de New York.
Máquinas esfomeadas de dólares,
manchados pelo sacrifício
dos seus novos martirizados,
negociantes prostituídos
do ar e do pão latino-americano
fossas fedorentas, carrascos, matilha
de caciques patibulares
sem mais lei do que a tortura
e a fome do povo sob o chicote.


(último poema 1973)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Tão Esquecido!

Pedrão Calado
ladrão profissional
assaltante
à mão armada
bastante eficiente
nas artes
do roubo em geral
Pedrão Calado
ladrão
de sua profissão
não era robin hood
nem anjo protector
dos pobres
não era um amador
tudo o que queria 
era conseguir uns cobres
para viver decentemente
na sua profissão
de ladrão
correcto e competente
Pedrão Calado
ladrão profissional
cuja verdadeira 
profissão
afinal
se lhe recortava 
rigorosa    no olhar


a solidão


  



mário-henrique leiria (1923-1980) 

                     

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

PALAVRAS





Apanhas do chão as palavras gastas,
como frutos podres; uma a uma,
no poema, formam a frase que
nunca imaginaste, com um sentido exacto.

E vês a árvorede onde cairam,
com as suas folhas de sílabas
e os seus ramos de verso, segredar-te
um musgo de sentimento ao ouvido.

Agora, as palavras são tuas. Envolvem-
-te como a hera se agarra aos muros,
e crescem por ti dentro até à alma.

Então, colhe as palavras que te enchem,
antes que caiam como frutos podres, e
oferece-as a quem passa, no cesto do poema.


Nuno Júdice





domingo, 28 de agosto de 2011

UM CANTO ...

Um canto em quatro cantos repartido:
o sonoro brado, a branda avena,
o rogo amargurado e corroído
e a vertical canção do sem-sentido.

Luís, mais perto desta a tua pena
está no parado e rápido ruído
que nos enche o papel e nos ordena
a palavra que verte, mira, acena

- e mais se me desmente o já poído
verbo no tenso engano em que me lido,
e ele me vence, em que fugaz arena!

Só nesta luta rasa e tão pequena
me entendes e te vejo na serena,
cega certeza de já ser vencido.


Pedro Tamen

sábado, 27 de agosto de 2011

Lápide


Luís Vaz de Camões.
Poeta infortunado e tutelar.
Fez o milagre de ressuscitar
A  pátria em que nasceu.
Quando, vidente, a viu
A  caminho da negra sepultura,
Num poema de amor e de aventura,
Deu-lhe a vida
Perdida.
E agora,
Nesta segunda hora
De vil tristeza,
Imortal,
É ele ainda a única certeza
De Portugal.

                                Miguel Torga




sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Vento ...






Sinfonia multicor,
que bela estrela em ti reluz!
-  Serás o Hino de Amor
que os Anjos cantaram a Cristo
Quando pregado na cruz

ou
                    

o desespero do Profeta
quando nasceu o Poeta?...


poema datado.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A esfinge

Até quando? Até quando iremos enganados,
A caminho do impossível horizonte,
Com um sinal de cinza sobre e fronte,
Inutilmente sensíveis e alados?

Até quando libaremos pelas taças dos mundos
Toda a maré de horror dum subterrâneo mar;
E entornaremos flores no cadáver do luar,
Cadenciados e juncundos?

Até quando teremos, como prémio, o castigo
Dos loiros triunfais, do ceptro de comando,
Num país que não vemos? Até quando? Até quando?

      -    Mas a esfinge é divina e o segredo é consigo.




António Manuel Couto Viana  (1923/2010)

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Letreiro


Tudo o que eu sou, o sou por obra e graça
Da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.

Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
Assim se quer esse condão comigo.

Olhai-me  -  Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores.
Fitaram o horizonte que hoje eu fito.

«O que estaria além de curva estreita?»
-  E da pergunta a cada instante feita,
Nasceu em mim a ânsia para o Infinito.

António Sardinha (1887-1925)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Nós, portugueses, somos castos

Nós, portugueses, somos castos.
Ninguém nos peça o que não somos.
Por isso, em nós, andam, de rastos,
Árvores de oiro com mil pomos.

Em nossos olhos moram lutos.
Os pomos de oiro estão nos ramos.
Às vezes tentam-nos os frutos
(Os pomos de oiro estão nos ramos!)

Nós, portugueses, somos castos.
Ninguém nos peça um rosto alheio.
Árvores de oiro andam, de rastos,
Partidas todas pelo meio.


Pedro Homem de Mello

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Na Rota das Palavras

Todos os dias faz anos que foram inventadas as palavras.
É preciso festejar todos os dias o centenário das palavras.

José de Almada Negreiros


Basta Imaginar

Basta imaginar,
um pássaro para o aprisionar,
e depois imaginar o ar para o libertar
e imaginar asas para ele voar
e imaginar uma canção para ele cantar.
Manuel António Pina


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores  
do mundo, e as formas e as proporções exactas, mesmo das
coisas que os sábios desconhecem.

Manuel da Fonseca

    

     Há palavras que fazem bater mais depressa o coração 
-  todas as palavras  -  umas mais do que outras, qualquer
mais do que todas. Conforme os lugares e as posições
das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem  -  do
lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol.
     Cada palavra é um pedaço do Universo. Um pedaço que
faz falta ao Universo. Todas as palavras juntas formam o
Universo.
     As palavras querem estar nos seus lugares!

Almada Negreiros


Fonte: Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian
                 VII série de Dezembro de 1990.  

domingo, 21 de agosto de 2011

FONTE



Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram.  Quando no campo
 se procurava o trevo,  ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo  -
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ah, ninguém falava dela,  porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.
Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
 de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.

herberto hélder  (1956)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O Fio do Horizonte


Um Amor Feliz
É uma das mais belas histórias de Amor da literatura contemporânea. O que significa duas coisas: que é uma história de amor verdadeira, vivida entre escritores; e que, sempre que dois escritores vivem uma história de amor, ela transborda para o lado da literatura. Mas entramos aqui numa dimensão mítica: Sartre/Simone, Aragon/Elsa, Catherine Millet/Jacques Henric, Marguerite Duras/Yann Andréa, são múltiplos modelos e as peripécias inesperadas da sua concretização. Contudo, por diversas razões que seria inoportuno evocar; eu, a ter que escolher, escolheria a longa e interminável história de amor entre Dominique Rolin e Philipe Sollers. Toda a gente a conhece na França da cultura, mas foi durante muitos anos um segredo dissimulado em alusões e pseudónimos. Até que a imprensa começou a falar, discretamente, como convém, mas de um modo cada vez mais cúmplice. Os factos são simples: há cerca de 40 anos, um jovem escritor recém-chegado a Paris, Philipe Sollers, com 20 e poucos anos, encontra uma escritora belga, belíssima, Dominique Rolin, que nessa altura tinha perto de 50 anos. Entre os dois estabeleceu-se uma relação passional que dura até hoje. Soube dela quando uma belga com quem trabalhei na Europália me disse um dia: “Ah Sollers, o grande amor da minha amiga Dominique...”  Mas este grande amor foi de uma extrema liberdade. Sollers sempre exibiu uma filosofia libertina e provocatória e sempre se apresentou como casado com a escritora, psicanalista e professora Julia Kristeva.
        No entanto, tanto nos livros de Sollers como nos textos de Rolin, as referências recíprocas são frequentes: Direi mesmo que em Rolin são constantes: seja com o nome de Jim, seja pelas iniciais Ph., Sollers é a presença invasora de todos os textos de Dominique Rolin, em particular um dos mais recentes, “Journal Amourex”, publicado em 2000 na Gallimard.  Hoje ela tem 80 e muitos, ele um pouco mais de 60. Passam longos períodos em Veneza. Encontrei-os uma vez no hotel onde estávamos, a Ruskin’s House. Tinham um quarto no terceiro andar, ela descia cedo e ficava a escrever com a sua Montblanc, no terraço sobre as águas do canal. De tempos a tempos ele aparecia à janela e dizia-lhe adeus. Por volta das onze, vinha ter com ela e iam de braço dado, felizes, livres e felizes, pelas ruas deslumbradas de Veneza.
        A força de Dominique  -  o seu modo de dizer a vida a partir de um dos seus livros  “Moi qui ne suis qu’ Amour”  -  está numa das frases da sua obra mais recente, “Le Futur Immédiat”: “O inimigo quer a minha morte, mas eu não temo. Morrerei de acordo, mas nunca aceitarei estar morta. ‘Nuance’.”.
        São “nuances” como esta que fazem a força das palavras  -  isto é, que nos dão os instrumentos da sobrevivência.
Eduardo Prado Coelho
Fonte: “O Público" - 24 de Janeiro de 2002.

           

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A CONSTRUÇÃO DO CORPO


Sempre a tentativa nunca vã ...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu corpo mais largo e a calma força
que sobe e modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia.
Entre a alma e a luz o movimento é livre.

Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível,
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar ao fogo lúdico.

No interior centro cálido abre-se a flor da luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.

                                                   
                                                            
                                                            António Ramos Rosa

            

terça-feira, 16 de agosto de 2011

LIBERTAÇÃO




 Menino doido, olhei em roda, e vi-me
 Fechado e só na grande sala escura.
 (Abrir a porta, além de ser um crime,
 Era impossível para a minha altura...)


 Como passar o tempo? ... e diverti-me
 Desta maneira trágica e segura:
 Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
 Desfiz trapos, arames, serradura ...


 Ah, meu menino histérico e precoce! 
 Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
 E tens a inquietação da Descoberta! 


 O menino, por fim, tombou cansado;
 O seu boneco aí jaz esfarelado ...
 E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

                   
                     José Régio (1901-1969)

Poeta militante










 A poesia não é um dialecto 
  para bocas irreais. 
  Nem o suor concreto 
  das palavras banais. 


  É talvez o sussurro daquele insecto 
  de que ninguém sabe os sinais. 


  Silêncio inssurrecto. 


                             José Gomes Ferreira

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

HOJE... TAL COMO ONTEM





LIVROS
Entrevista

Eduardo Dâmaso

Ao fim de sete anos sem publicar ficção, Baptista-Bastos  regressa com o livro No Interior da Tua Ausência (Asa), que mantém o essencial da  temática que alimenta a obra do escritor. Lisboa, o amor, a política, são os vértices sempre presentes no triângulo literário de Baptista-Bastos.

‘A minha literatura é um discurso sobre o Pais’
Sem paninhos quentes ou rodriguinhos de palavreado para evitar ir direito ao assunto. Dizendo o que acha que deve dizer,  mal ou bem, elogioso ou mortífero na farpa, Baptista-Bastos  demonstra nesta entrevista que só se sente bem a viver a vida em voz alta, demarcando os territórios do afecto de outros onde não há espaço para condescendências. Sete anos depois de ter publicado o último livro, o escritor regressa com a obra “No Interior da Tua Ausência”, uma evocação memorialista da Lisboa dos bairros e castiça que tende a desaparecer, mas sobretudo uma incursão melancólica pelo passado  que nos persegue, pela vida que se vai deixando para trás, pelos amores  que vão escrevendo a geografia intima dos afectos. Baptista-Bastos acerta também as contas com a sua geração, aquela que não deveria ter calado tanta coisa e que manifestamente não tinha o exercício do poder inscrito nas suas prioridades. Uma geração que perdeu no pós-25 de Abril e que não se adaptou aos tempos da normalidade (e da melancolia) democrática.
- A que Baptista-Bastos corresponde este livro?
Corresponde ao mesmo Baptista-Bastos que escreveu o “Secreto Adeus”. Este livro levou-me mais a reflectir sobre a minha própria vida, sobre aquilo que fiz de errado, as injustiças que cometi...
- Também as de que foi alvo?
Eu não estou magoado com as injustiças que me fizeram, as omissões ao meu nome...
- Tem um discurso mais autopunitivo no livro?
É um bocado isso... mais uma flagelação à minha geração. A minha geração investiu muito na política, na transformação da sociedade, pôs esta gente no poder   -   esta que lá está, a outra anterior e a anterior da anterior...   -   e eles traíram-nos.  Eles próprios traíram as convicções e os ideais da juventude. Quase todos nós traímos, é terrível isto...
- Talvez o exercício do poder não fizesse parte dos planos dessa sua geração, como o Manuel Vásquez Montalbán costuma dizer sobre a sua própria geração, traída pelo programatismo do PSOE.
Exactamente. Há aquela história de Steinbeck, filmada pelo Elia Kazan em “Viva Zapata”, sobre o homem que se vê tocado pelo poder e se confronta com o não saber gerir esse poder e estar quase a trair as suas próprias ideias. Mas há uma coisa: penso que errámos muitas vezes, mas a minha geração tinha paixão. Fizemos as coisas com uma paixão romântica, éramos neo-românticos; agora isso tudo perdeu-se e a vida portuguesa não tem paixão. Vejamos uma coisa:  em termos políticos, a última paixão que houve foi a ascensão do dr. Cavaco Silva que determinou ondas de contestação e ondas de aceitação e admiração. Essa situação conflitual é um barómetro da paixão. As paixões que hoje existem são as do futebol, extremamente tristes. A agressividade física é a manifestação de uma paixão triste, não é jubilosa. A minha geração perdeu-se e ganhou neste júbilo. Este livro reflecte isso, é o que eu penso.
- Mas isso não tem mais a ver com a chamada “melancolia democrática”, que é uma característica muito forte do principal personagem do seu livro?
Mas a culpa é nossa. A minha geração não quis conhecer esse território da melancolia democrática. Quis pôr os outros no poder. Há dias assisti a uma entrevista do sr. Dr. Nuno Brederote dos Santos e eu penso que é uma coisa deplorável, quando ele diz que não subscrevia abaixo-assinados. Isso é uma terrível demissão . Deixe-me contar-lhe uma história:  há tempos passou na televisão um documentário terrível sobre 180 mulheres que tinham sido despedidas da indústria têxtil e o operador passava a câmara só pelas caras das mulheres, de todas as idades, e aquilo parecia um filme de Eisenstein. As caras das mulheres, o silêncio, o choro. Todas elas choravam. Fiquei profundamente emocionado. Aliás, fico sempre muito emocionado com os desempregos, os miúdos com fome, as guerras. Agarrei no telefone e telefonei para um. dois, três intelectuais ditos da resistência e disse:  “Eh pá, vamos fazer um abaixo-assinado, tem o valor que tiver, mas é uma atitude para com aquelas mulheres, para saberem que há meia dúzia de pessoas que vivem em voz alta e estão a dar-lhe um sinal de solidariedade.”  Todos eles, não digo quem, me disseram que isso tinha passado de moda. As pessoas perderam a seriedade e o sentido de honra nas mais pequenas coisa.
- Há um sonambulismo latente na vida pública?
Essa palavra sonambulismo vou rapiocá-la, porque acho uma palavra admirável. Há um sonambulismo de ordem moral. Esta ideia de amnésia histórica começou nos anos 80 e assumiu nessa altura uma dimensão quase doutrinal. É nos EUA, com o sr Reagan, na Inglaterra com a sra. Tchatcher, e aqui com o dr. Cavaco.
- Mas a esquerda da sua geração não soube bater-se contra isso. Há quem diga, ironicamente, que a esquerda elegeu o engenheiro Guterres...
A esquerda elegeu o engenheiro Guterres, porque votou contra Cavaco. Eu votei nele em 1995, mas, já escrevi “mea culpa” e digo nunca, nunca, nunca mais. Nessa altura já não podia com o dr. Cavaco, que tem inépcia própria de quem  não sabe lidar com as pessoas. Ainda hoje ele não sabe. No outro dia vi aquela entrevista que ele deu na RTP à Judite de Sousa, que eu considero a melhor entrevistadora da televisão, e não diz rigorosamente nada. Isso é o drama dele e o nosso drama.
- Mas estava a falar da questão da teoria da amnésia histórica...
Começa nos anos 80 associada ao culto da juventude pela juventude, que é um culto criptofascista e é um apagamento da memória. Não se pode viver sem memória.
-  O seu livro é também um exercício contra o esquecimento?
Já no “Secreto Adeus” eu punha pessoas vivas e algumas mortas. Aí eu falava do Abelaira, do Redol, no Vergílio Ferreira. Todos os meus livros têm referências a pessoas que eu considero que fazem parte da fisionomia da pátria. E há uma outra coisa:  quando entreguei este original do “Interior da Tua Ausência”, descobri que todas as personagens dos meus livros vão tendo a minha idade. A cosmovisão  modifica-se, mas o princípio e o conceito não se modificam nunca, porque vai ficando um sotaque, um tique daquilo que foram. A minha literatura é sempre um discurso sobre o país.
- Que passado é que anda atrás de si, tal como diz o personagem do livro, que fala sobre um passado que anda atrás de nós?
Eu tenho saudades do heroísmo impossível. Não tenho nada um saudosismo de ser novo;  tenho antes saudades    -   que é bom e que quer dizer que se tem lastro e história   -   das velhas lutas. O que me falta, nesta idade, é a capacidade de transmitir esse prazer das lutas às gerações mais novas. Gostava que a geração imediata agarrasse nas nossas velhas flâmulas, nas nossas velhas bandeiras e seguisse o nosso caminho. Devo dizer-lhe uma coisa:  eu vou sempre atrás das bandeiras vermelhas e como os velhos cavalos de guerra vou sempre atrás dos tambores.  Era isso que desejaria, que as gerações que aí vêm fossem sempre atrás dos tambores, fossem sempre atrás das bandeiras. No meu caso atrás de bandeiras vermelhas. Sou um homem sem partido, sou um homem assumidamente de esquerda, que é muito crítico em relação às pessoas de esquerda. A esquerda não tem respostas para esta ofensiva da direita, para a globalização.
- Mas onde está a sua esquerda no mundo das esquerdas?
Eu sou um homem de formação marxista. No livro diz-se uma frase terrível que tem sido muito citada:  “Andámos a rezar a Marx sem ler Marx”. Se calhar, eu também andei um bocado nisso... se calhar, também há em mim uma fé irracional nas possibilidades que eu julgava infinitas na esquerda. Mas que esquerda é esta? Com um PCP a esvaziar-se de conteúdo cada vez mais, com um PS que não existe como ideia de socialismo, com um Bloco de Esquerda que me é muito simpático, porque recupera e reabilita alguns dos meus gritos, algumas das minhas imprecações  e indignações. Evidentemente que não estou só perplexo, estou talvez assustado.
- Acha que há um recuo histórico da esquerda face ao poder?
Eu tenho medo de falar de recuo histórico, porque continuo a acreditar que a história caminha no sentido da libertação do homem. E que estamos perante um patinar...
Agora a esquerda não sabe enfrentar este fenómeno irreversível e inelutável da globalização, em relação à qual poderia fazer uma frente cultural. A minha geração foi quase que instruída para o ódio. Há uma cultura no PCP anti-PS e no PS anti-PCP, que não olha o outro como um adversário, discutível ou não, mas como um inimigo. Há um bloqueio à modernização ideológica. O recurso a alguns teóricos como o Walter Benjamim e o Luckacs seria muito útil, mas esse debate cultural e  político não existe. Os intelectuais demitiram-se da sua condição de interventores, contrariando Platão, quando defendia a intervenção dos intelectuais e artistas na sociedade.
- No livro há um ajuste de contas com o seu passado de militante do PCP?
Penso que não. É mais uma critica em relação a tudo o que calámos e não devíamos ter calado. Mesmo antes do 25 de Abril calámos muita coisa... Agora, repare uma coisa, o PCP foi hegemonicamente cultural durante 40 anos. Era tudo comunista, havia apenas dois ou três que o não eram. Eu recordo-me de um dia o Pedro Coelho, dirigente do PS e meu amigo, me dizer que naquela direcção do PS da altura em que ele me disse isto ser tudo comunista menos ele. Foram todos... o Zenha, o Mário Soares... todos passaram por lá. Porque o PCP era uma organização extremamente fascinante que queria alterar as coisas e mudar o mundo. Isso é um património que ninguém pode tirar ao PCP, hoje vítima de uma profundíssima falta de respeito intelectual por parte de alguns sectores. Eu critico com muita violência o PCP, mas é preciso ter muito respeito por essa gente desses anos muito difíceis.
- Mas o que é que a sua geração calou afinal?
O caso da Hungria, da Checoslováquia. Na altura em 1968, eu estive de acordo com a invasão da Checoslováquia... Não tínhamos informação nenhuma em Portugal. Repare que a nossa guerra não era a de Angola, a guerra colonial, a nossa guerra era a do Vietname. Discutíamos nos cafés os avanços do vietcong, a estratégia dos americanos... Isso é que não podemos nunca perdoar ao fascismo. Se fomos culpados de muitas coisas, também fomos vítimas de outras. Não estou a desculpar nada à minha geração ou a mim próprio. Tenho um grande orgulho no meu percurso moral, intelectual, político.
- Como é que vê hoje a literatura portuguesa?
Os escritores portugueses escrevem muito mal na maioria dos casos. Não tenho problema nenhum em dizer isto. Escreve-se muito e mal. Os escritores portugueses só estão interessados em ser traduzidos, sobretudo em Espanha, ainda não percebi  lá muito bem porquê... e em ganhar prémios da APE, o que acho quase uma indignidade de ordem moral. Vão todos ali a Tróia, fazem uns discursos, o Presidente da República diz umas coisas e ficam todos contentes... Eu nunca vendi fruta bichada, não me vejo em nada disso.
- Acha que isso subverte a relação dos escritores com a essência da literatura?
Por isso é que as pessoas torcem o nariz ao que se escreve hoje. As pessoas estão a escrever sobre a sua vidinha e não sobre aquilo que nos diz respeito. A literatura portuguesa hoje não nos dá conta do que se passa no país. Devo dizer que não gosto muito do António Lobo Antunes como escritor, mas devo reconhecer que ele tem feito um discurso sobre alguma realidade portuguesa que é muito significativo. Eu gosto mais do irmão, do João Lobo Antunes, e tenho oferecido muito o livro dele “Memória de Nova Iorque e Outros Ensaios”, que considero uma obra notável, porque está ali ficção e onde há ficção há uma proposta de reflexão sobre o mundo e sobre a sociedade.

Fonte: - Jornal - O Público, de 12 de Abril de 2003.