quarta-feira, 29 de junho de 2011

Quinta Carta




Roma, 29 de Outubro de 1903

        Caro e muito prezado Senhor,
       
        Recebi a sua carta de 29 de Agosto em Florença e só agora, dois meses volvidos, lhe respondo. Perdoe este meu desleixo, mas gosto pouco de escrever cartas quando estou em viagem, porque para isso não preciso apenas do material indispensável, mas também de algum silêncio e solidão e de uma hora que não me seja demasiado estranha.
        Chegámos a Roma há cerca de seis semanas, numa altura em que encontrámos ainda uma Roma vazia, quente, ameaçada de febres,  e esta circunstância, aliada a outras dificuldades práticas de alojamento, contribuiu para o desassossego à nossa volta que não queria amainar e também para aquele pesado sentimento de exílio que nos acomete em terras estrangeiras. Acrescente-se ainda que, para quem não a conhece, Roma tem nos primeiros dias um efeito esmagador e triste, com a sua atmosfera de museu, sem vida e baça, com a profusão de passados escavados e a custo mantidos (de que se alimenta um magro presente), com a indescritível  sobrevalorização, incitada por eruditos e filólogos e imitada por esses animais de hábitos que são os turistas em  Itália, de todas essas coisas desfiguradas e apodrecidas, que no fundo não são mais do que restos acidentais de um outro tempo e de uma outra vida que não é nem deve ser a nossa. Por fim, ao cabo de semanas de uma aversão quotidiana, voltamos a nós e, mesmo que um pouco atordoados, dizemos: não, não há aqui mais beleza do que noutras partes, e todos estes objectos, que gerações sucessivas admiraram e que as mãos de ajudantes tornaram melhores e mais completos, não querem dizer nada, não são nada e não têm coração nem valor nenhum – mas há aqui muita beleza, porque há muita beleza em todo o lado. Cursos de água cheios de vida seguem pelos velhos aquedutos até desembocarem na grande cidade, onde dançam nas muitas praças em conchas de pedra branca e se espraiam em tanques largos e espaçosos, rumorejando durante o dia com um sussurro que sobe à altura da noite, que aqui é grande, cheia de estrelas e com brisas suaves. E há também jardins, áleas inesquecíveis e escadarias, escadarias que Miguel Ângelo projectou, escadarias construídas à imagem de água que caí, uma larga queda de água, com um degrau nascendo de outro degrau, como a onda nasce da onda. Com estas impressões restabelecemo-nos, furtamo-nos à multiplicidade que tenta acorrentar a nossa atenção com a sua conversa e tagarelice (e como palreia!) e lentamente aprendemos a reconhecer as poucas coisas onde o eterno se demora e cuja solidão podemos partilhar em silêncio e amar.
        De momento vivo ainda na cidade, no Capitólio, não muito longe da mais bela estátua equestre que nos chegou da arte romana: a estátua de Marco Aurélio; mas dentro de poucas semanas vou mudar-me para um espaço silencioso e simples, um velho terraço perdido no lugar mais recôndito de um grande parque, escondido da cidade, do seu barulho e acasos. Vou aí ficar todo o Inverno, alegrando-me com o grande silêncio e esperando que ele me ofereça horas boas e valorosas…
        Quando lá estiver e me sentir mais em casa, hei-de escrever-lhe uma carta mais longa onde falarei também do que me escreveu. Hoje tenho ainda apenas a dizer-lhe (e se calhar fiz mal em não o ter avisado mais cedo) que o livro que menciona na sua carta (e que contém trabalhos seus) não me chegou às mãos. Talvez tenha voltado para si a partir de Worpswede ? (É que enviar encomendas para o estrangeiro não é boa ideia.) Esta é a possibilidade mais favorável e espero que ma confirme. Com sorte não se terá perdido, o que infelizmente não é excepção nos correios italianos.
        Terei muito gosto em receber este livro (como aliás tudo o que seja um sinal seu), e hei-de ler e reler e viver tão bem e tão sinceramente quanto possa todos os versos que entretanto surjam (caso mos confie).
        Com os melhores desejos e cumprimentos.

O seu,
Rainer Maria Rilke                                             
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   




terça-feira, 28 de junho de 2011

Quarta Carta




Worpswede, junto a Bremen (morada temporária),
16 de Julho de 1903

        Deixei Paris acerca de dez dias, em sofrimento e cansado, e viajei até esta grande planície nórdica cuja vastidão e silêncio e céu, assim espero, me devolverão a saúde. Mas viajei chuva adentro, uma chuva demorada que só hoje deixa escapar alguma luz sobre a terra assolada por ventos inquietos; e aproveito este primeiro momento de claridade para o saudar, caro Senhor.
        Caro Senhor Kappus: deixei uma carta sua muito tempo por responder. Não que me tenha esquecido dela  - pelo contrário, era daquelas cartas que voltamos sempre a ler quando as encontramos por entre a correspondência, e nela reconheci-o a si, como se o visse de muito perto. Refiro-me à sua carta de 2 de Maio, sem dúvida que se lembra dela. Quando a leio, como agora, no grande silêncio destas terras longínquas, a sua bonita inquietação com a vida comove-me mais ainda do que quando estava em Paris, onde tudo soa e ecoa de maneira diferente por causa do imenso ruído que faz estremecer as coisas. Aqui, com uma terra violenta à minha volta por onde passam os ventos vindos dos mares, aqui sinto que essas perguntas e emoções, que vivem uma vida própria na sua profundeza, não podem ser respondidas por ninguém; pois mesmo os melhores falham nas palavras quando querem designar o que é quase inaudível e quase indizível. Julgo, no entanto, que v. poderá encontrar uma solução se procurar amparo em coisas semelhantes àquelas que agora ajudam à convalescença dos meus olhos. Se procurar amparo na Natureza, no que é nela tão simples e pequeno que quase não se vê mas que inesperadamente pode tornar-se grande e incomensurável;  se alimentar esse amor pelo mais ínfimo  e se tentar, humilde como um criado, ganhar a confiança do que parece pobre, tudo será para si mais fácil, mais coeso e de algum modo mais conciliador, talvez não no intelecto, que recua atónito, mas no mais íntimo da sua consciência, do seu conhecimento e atenção. V. é tão jovem ainda, está diante de todos os inícios, e por isso gostaria de lhe pedir, caro Senhor, que tenha paciência quanto a tudo o que está ainda por resolver no seu coração e que tente amar as próprias perguntas como se fossem salas fechadas ou livros escritos numa língua muito diferente das que conhecemos. Não procure agora respostas que não lhe podem ser dadas porque ainda não as pode viver. E tudo tem de ser vivido. Viva agora as perguntas. Aos poucos, sem o notar, talvez dê por si um dia, num futuro distante, a viver dentro da resposta. Talvez traga em si a possibilidade  de criar e de dar forma  e talvez venha a senti-la como uma forma de vida particularmente pura e bem-aventurada; é esse o rumo que deverá tomar a sua educação; mas aceite o que está por vir com grande confiança, e se ele surgir apenas da sua vontade, de uma qualquer necessidade interior, deixe-o entrar dentro de si e não odeie nada. O sexo é difícil, bem sei. Mas nós fomos incumbidos do difícil, quase tudo o que é sério é também difícil, e tudo é sério. Se reconhecer esta verdade, e se conseguir criar, a partir de si, da sua predisposição e singularidade, da sua experiência e infância e força, uma relação própria com o sexo  (não influenciada por convenções ou costumes), então já não precisará de ter medo de se perder e de não ser digno do que tem de mais precioso.
        A volúpia do corpo é uma experiência em nada diferente da visão pura ou da sensação pura com que um fruto bonito enche a língua; é uma experiência grande e infinita que nos é concedida, um modo de conhecimento do mundo, é a plenitude e o fulgor de todo o conhecimento. E que esta experiência nos seja concedida não é mau; mau é que quase todos os homens abusem  dela e desperdicem  e a vejam como um estímulo em alturas de cansaço e como uma distracção, em vez de perceberem  que é antes uma colecção de pontos culminantes. Aliás, os homens mudam também o acto de comer: a carência , por um lado, e o excesso, por outro,  turvaram a clareza desta necessidade, como turvas se tornaram todas as necessidades simples e profundas em que a vida se renova. Mas o indivíduo pode vê-las e vivê-las com clareza (e se não o indivíduo, que é demasiado dependente, então o solitário). Pode lembrar-se de que toda a beleza dos animais e das plantas é uma forma tranquila e perene de amor e nostalgia, e pode ver os animais como vê as plantas, que se unem e multiplicam e crescem, com paciência e boa vontade, não por prazer ou dor física, mas obedecendo a necessidades maiores do que o prazer ou a dor e mais poderosas do que a vontade ou a resistência. Ah, se o homem soubesse aceitar mais humildemente, se soubesse carregar, suportar, sentir mais seriamente este segredo que enche o mundo até às mais pequenas coisas, se soubesse como ele é terrivelmente árduo em vez de o julgar simples. Se fosse mais temente da sua própria fecundidade, que é uma apenas, quer se manifeste no corpo ou no espírito; porque a criação do espírito tem também origem na criação física, é idêntica a ela, é apenas uma repetição mais silenciosa, arrebatada e eterna da volúpia do corpo. « A ideia de ser criador, de gerar, de dar forma » não é nada se não for  continuamente confirmada e concretizada no mundo, não é nada sem o acordo mil vezes asseverado das coisas e dos animais, e a sua fruição é tão indescritivelmente bela e rica porque está cheia de lembranças herdadas da geração e do parto de milhões de criaturas. Numa ideia criadora vivem mil noites esquecidas de amor que lhe dão grandeza e elevação. E aqueles que à noite se unem e entrelaçam numa volúpia que os embala trabalham seriamente e recolhem doçuras, profundidade e força para o canto de um qualquer poeta futuro que se levantará para dizer os êxtases que não podem ser ditos. E chamam o futuro; e mesmo quando erram e se agarram cegamente, o futuro chega ainda assim, ergue-se uma nova pessoa, e sobre o fundamento do acaso, que aqui parece consumar-se, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente de encontro ao óvulo aberto que o chama a si. Não se deixe enganar pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei. E só perdem o segredo aqueles que o vivem mal e falsamente ( e são muitos ), mas transmitem-no a outros como uma carta fechada, sem o saberem. E não se deixe enganar pela multiplicidade dos nomes e pela complexidade dos casos. Talvez exista, por cima de tudo, uma grande maternidade como nostalgia comum. A beleza da virgem, de um ser que (como v. tão bem disse) « ainda não deu provas », é maternidade que se adivinha e prepara, que tem medo e anseia. E a beleza da mãe é maternidade que serve, e na mulher de cabelos brancos é uma grande lembrança. E a maternidade está também no homem, parece-me, no seu corpo e no seu espírito, pois o que ele concebe é também uma espécie de parto, e dar à luz é criar a partir da plenitude interior. E os dois sexos talvez sejam mais próximos do que se julga, e a grande renovação do mundo consumar-se-á talvez quando o homem e a rapariga, libertos de todos os desprazeres e falsas emoções, se procurarem, não como opostos, mas como irmãos e vizinhos, e se unirem como pessoas para partilharem, com ânimo simples, sério e paciente, o peso da sexualidade que lhes foi imposta.
        Mas tudo o que um dia talvez venha a ser possível para muitos pode ser já preparado pelo solitário e construído com as suas próprias mãos, que erram menos. Por isso. Caro Senhor, deverá amar a sua solidão e carregar o sofrimento que a acompanha com lamentos melodiosos. Pois aqueles que lhe são próximos estão distantes, como me diz, e isso mostra que a sua solidão começa a estender-se. E se o próximo parece distante é porque a sua solidão toca já nas estrelas e é desmedida. Alegre-se com o seu crescimento, que não poderá ser assistido por ninguém, e seja benevolente para com aqueles que ficam para trás, e mostre-se firme e tranquilo diante deles e não os atormente com as suas dúvidas e não os assuste com a sua esperança ou com a sua alegria, que eles não podem compreender. Tente estabelecer com eles uma qualquer comunhão simples e leal, que não será forçosamente de mudar quando v. mudar;  ame a vida que neles se manifesta com uma forma diferente e estime aqueles que começam a envelhecer e que temem a solidão em que v. confia. Evite alimentar o drama que acicata sempre a relação entre pais e filhos, que esgota muita da força dos filhos e consome o amor dos pais, que age e dá calor mesmo quando não entende. Não lhes peça conselhos e não conte com a sua compreensão; mas acredite que um amor lhe está reservado, como uma herança, e confie na força e na bênção deste amor, que nunca terá de abandonar para conseguir chegar longe!
        É bom que tenha arranjado uma profissão que assegura a sua independência e que o deixa entregue a si mesmo em todos os sentidos. Espere pacientememte para ver se ela terá o efeito de tolher a sua vida interior. Parece-me uma profissão bastante difícil e exigente, porque se verga ao peso de grandes convenções e porque quase não deixa espaço para uma concepção pessoal das suas tarefas. Mas mesmo em circunstâncias pouco familiares, encontrará sempre na solidão uma casa e um abrigo, e verá que é dela que partem todos os caminhos. Os meus melhores desejos acompanham-no e a minha confiança está consigo.
                                                                                   O seu,
Rainer Maria Rilke     
  
               



sexta-feira, 24 de junho de 2011

Terceira Carta



Viareggio, junto a Pisa (Itália), 23 de Abril de 1903

        A carta que me enviou pela Páscoa, caro Senhor, trouxe-me grande alegria, pois contava várias coisas boas acerca de si, mas também porque o modo como falou da grande  e  admirável arte de  Jacobsen  mostrou que eu não estava errado ao conduzir a sua vida e as suas muitas perguntas à plenitude destes  livros.
        Irá agora entrar em Niels Lyhne,  um livro magnífico e profundo; quanto mais o lemos, mais parece que encontramos nele tudo:  do cheiro levíssimo da vida ao sabor cheio e grande  dos seus frutos  mais pesados. Não há nele nada que não tivesse sido entendido,  apreendido, vivido e reconhecido nas reverberações vibrantes da memória;  nenhuma experiência é demasiado insignificante, e mesmo o acontecimento mais miúdo cresce como o destino, e o destino ele próprio é como  um  grande  e fabuloso tecido, em que cada fio foi conduzido e entrelaçado num outro por mão infinitamente delicada, sendo sustido e reforçado por cem fios mais. Terá agora o grande privilégio de ler este livro pela primeira vez e passará pelas suas incontáveis surpresas como se caminhasse num sonho novo. Mas posso afiançar-lhe  que  mesmo mais tarde é sempre com o mesmo espanto que percorremos estes livros, que não perdem  nunca o fabuloso poder e a qualidade feérica com que se apoderam do leitor na primeira vez.
        Com eles conhecemos a fruição e a gratidão, o nosso olhar torna-se de algum modo mais apurado e simples, a nossa crença na vida ganha profundidade, e sentimo-nos maiores na vida e bem-aventurados.
        E mais tarde  terá de ler também esse esplêndido livro  sobre o destino e a nostalgia, Marie Grubbe,  e ainda as cartas de  Jacobsen  e os diários e os fragmentos e por fim os seus versos que (mesmo se em tradução medíocre ) vivem em ressonâncias infinitas. (Para isso aconselho-o, quando tiver oportunidade, a comprar a bonita edição das obras completas de Jacobsen,  que contém tudo o que mencionei. Foi publicada em Leipzig em três volumes, numa boa tradução de Eugen Diederichs,  e cada livro custa, se não estou em erro, apenas 5 ou 6 marcos.)
        A sua opinião sobre  «Aqui deviam estar rosas…»  (essa obra de incomparável forma e finura) é absolutamente correcta, ao contrário do que pretende o autor do prefácio. E aproveito desde já para lhe fazer o seguinte pedido: leia trabalhos estéticos e críticos o menos possível  -  ou correspondem a opiniões partidárias que petrificam e perdem o sentido na sua rigidez sem vida, ou não são mais do que jogos de palavras sofisticados, que hoje defendem uma coisa para amanhã defenderem o contrário. A obra de arte é uma solidão sem fim, e nada está mais longe de tocá-la do que a crítica. Só o amor poderá compreender e sustentar e fazer justiça a uma obra de arte. Em relação a estas polémicas, recensões ou prefácios, confie sempre em si próprio e na sua sensibilidade; se estiver enganado, o crescimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á lentamente e com o passar do tempo a novos conhecimentos. Deixe que os seus juízos sigam a sua própria evolução silenciosa e imperturbável que, como todos os progressos, obedece a uma profunda necessidade interior, não podendo ser imposta nem apressada. Tudo se resume a levar ao fim a gravidez e depois dar à luz. Deixar medrar cada impressão, cada semente de uma emoção, dentro de nós, no escuro, no inefável, no inconsciente, inacessível ao próprio entendimento, e com profunda humildade e paciência aguardar a hora do parto de uma nova claridade: apenas assim se vive artisticamente, no entendimento como na criação.
        Esta vida não pode ser medida no tempo, o tempo não se divide em anos, e dez anos não são nada.  Ser artista é não calcular e não contar, é amadurecer como a árvore, que não comanda a seiva e que enfrenta tranquila as tempestades da Primavera se m recear que o Verão não chegue.  O Verão chegará. Mas apenas para quem esperou pacientemente, para quem aqui permaneceu  como se à sua frente se estendesse, sem cuidados, silenciosa e imensa, a eternidade.  Todos os dias aprendo esta lição, aprendo-a pelo sofrimento que aceito com gratidão: a paciência é tudo.

RICHAR DEHMEL : A impressão que me suscitam os seus livros (e, já agora, também o homem, que conheci fugazmente) é um certo receio, o receio de que uma boa página que encontre venha a ser destruída pela seguinte e que o que nela havia de admirável se torne indigno.  Caracterizou-o muito bem  com a sua expressão:  «viver e criar no cio» . E, com efeito, a experiência artística é tão incrivelmente próxima da experiência sexual, da sua dor e prazer, que os dois fenómenos na verdade não são mais do que formas diferentes de uma mesma  nostalgia e bem-aventurança. E se, em vez de  «cio» ,  pudéssemos falar de  «sexo»,  sexo no sentido mais amplo e puro, não corrompido pelos erros da Igreja, então a arte de Dehmel seria incomparavelmente grande e importante. A sua força poética é grande e forte como um instinto primitivo, contém ritmos próprios e implacáveis, parece que irrompe de uma montanha.
Mas estou em crer que esta força nem sempre é sincera e sem pose.  (Este é afinal um dos testes mais difíceis para um criador: ter de permanecer  sempre  inconsciente  e ignorante das suas melhores virtudes se não quiser privá-las da sua inocência e virgindade!) E quando essa força, que o perpassa ruidosamente,  chega ao mundo do sexo, não encontra o que aí precisava de encontrar: uma pessoa pura.  Este mundo não amadureceu ainda, não é puro, não é suficientemente humano, é apenas masculino, é cio, ruído e desassossego,  saturado com os velhos preconceitos e com a altivez com que o homem desfigurou e sobrecarregou o amor. Porque Dehmel ama apenas como homem, e não como pessoa, há na sua percepção do sexo uma qualquer estreiteza, uma aparência selvagem , hostil, temporal, não eterna, que diminui a sua arte, que a torna ambígua e duvidosa. Esta arte não subsiste sem mácula, está marcada pelo tempo e pela paixão, e pouco nela perdurará.  (Mas é esta a sorte de quase toda a arte!) Ainda assim, podemos sempre contentar-nos com o que nela é grande, cuidando apenas de não nos perdermos, como acontece aos aficionados, neste mundo de Dehmel, tão infinitamente angustiado, tão cheio de adultério  e confusão, e tão distante dos destinos verdadeiros, que trazem mais sofrimento do que estas turbulências temporais, mas também mais oportunidades de alcançar a grandeza e de ganhar coragem para enfrentar a eternidade.
Por fim, no que respeita aos meus livros, a minha vontade seria enviar-lhe todos aqueles que de algum modo lhe pudessem trazer alegria. Mas sou um homem muito pobre e, uma vez publicados, os meus livros já não me pertencem. Nem sequer os posso comprar para os oferecer, como tantas vezes gostaria de fazer, a quem os soubesse apreciar.
Por isso, escrevo-lhe aqui num bilhete os títulos (e editoras) dos meus livros mais recentes (os últimos, no total terei publicado 12 ou 13) e deixo-lhe a si, caro Senhor, a decisão de encomendar alguns quando tiver ocasião.
Agrada-me saber que os meus livros estarão consigo.
Bem-haja!
                O seu,
                                   Rainer Maria Rilke
           

         

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Segunda Carta



         

 
Viareggio, junto a Pisa (Itália), 5 de Abril de 1903

Terá de perdoar-me, caro Senhor, se só hoje gratamente respondo à sua carta de 24 de Fevereiro: tenho andado indisposto o tempo todo, não propriamente doente, mas oprimido por um cansaço semelhante à gripe, que me deixou incapaz para tudo. E por fim, como a situação não queria mudar, viajei até esta costa meridional cujos efeitos benéficos já em tempos me ajudaram. Mas não me sinto ainda bem, custa-me escrever, e por isso peço-lhe que receba estas poucas linhas como se fossem muitas mais.
        Saberá certamente que as suas cartas me trarão sempre grande alegria, e peço-lhe apenas que seja indulgente com as minhas respostas, que muitas vezes talvez o deixem de mãos vazias; pois no fundo, e sobretudo nas coisa mais profundas e importantes, estamos indizivelmente sós, e para que um homem possa aconselhar ou sequer ajudar um outro, muitas coisas têm de acontecer e ser levadas a bom porto, uma constelação inteira terá de favorecer esta intenção.
        Queria hoje dizer-lhe apenas duas coisas: Ironia:
        Não se deixe dominar por ela, sobretudo nos momentos em que não está a criar. Nos momentos de criação, tente servir-se dela como um meio entre outros para apreender a vida. Quando usada puramente, também a ironia é pura, e não há que ter vergonha dela; se a sentir demasiado familiar, receie esta crescente confiança e dedique-se antes a tópicos grandes e sérios, diante dos quais ela será pequena e indefesa. Procure a profundidade das coisas: a ironia nunca desce até lá, e quando tiver tocado a fímbria do grande, investigue também se este modo de compreensão corresponde a uma necessidade do seu ser. Pois, sob a influência de coisas sérias, a ironia ou cairá por si (caso seja acidental) ou fortalecerr-se-á (na medida em que seja uma pertença inata) até se tornar uma ferramenta séria e passar a fazer parte da série de meios que irão constituir a sua arte.
        E a segunda coisa que tenho hoje para lhe dizer é a seguinte:
        Entre todos os livros que tenho, só uns poucos são para mim indispensáveis, e dois deles acompanham-me sempre para onde vou: Mesmo agora estão aqui ao meu lado: a Bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês  Jens Peter Jacobsen. Ocorre-me perguntar se conhece as suas obras. Pode facilmente encontrá-las, porque algumas foram publicadas na Biblioteca Universal da Reclam em traduções bastante boas. Compre o voluminho Seis Novelas de J.P. Jacobsen e também o romance  Niels Lybne, e comece por ler a primeira novela do primeiro livro, intitulada  «Mogens». Diante de si abrir-se-á um mundo, a felicidade, a riqueza, a incompreensível grandeza de um mundo. Viva dentro destes livros por algum tempo, aprenda com eles o que lhe parecer digno de ser aprendido, mas acima de tudo ame-os. Este amor será mil vezes retribuído e, o que quer que a vida lhe reserve, estou certo de que este amor fará parte do tecido do seu ser como um dos fios mais importantes por entre os muitos fios das suas experiências, desilusões e alegrias.
         Se tiver de dizer com quem aprendi o que é a criação, a profundidade e eternidade da criação, posso indicar dois nomes apenas: o nome do grande poeta Jacobsen,  e o nome de Auguste Rodin, o escultor que não tem par entre os artistas que hoje vivem.
       

E muita sorte no seu caminho!
                                                               O seu,
Rainer Maria Rilke
                                                                                                           

  



quarta-feira, 22 de junho de 2011

CARTAS ...


Rainer Maria Rilke, nasceu em Praga em 1875, e é considerado um dos mais importantes poetas de língua alemã do século XX, a sua obra é vastíssima incluindo inúmeras cartas, entre quais as mais conhecidas são as CARTAS A UM JOVEM POETA (1903-1908), dirigidas a Franz Xaver Kappus, um admirador seu, aspirante a poeta.
Escrevendo numa simples, elegante e sensível prosa, Rilke aborda nestas cartas temas como a poesia, a solidão, a natureza, o amor e a tristeza, procurando aconselhar o seu interlocutor que hesitava se deveria ou não seguir uma carreira literária.
      
Primeira Carta

                                                                   

      Paris,  17 de Fevereiro de 1903


Estimado Senhor,
       
A sua carta chegou-me há poucos dias. Quero agradecer-lhe a sua grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer para além de agradecer. Não posso pronunciar-me sobre a qualidade dos seus versos, pois sou avesso a qualquer intenção crítica. Nada está mais longe de tocar numa obra de arte do que as palavras críticas: delas resultam apenas mal-entendidos mais ou menos  felizes. As coisas não são tão apreensíves nem tão dizíveis como nos querem fazer crer; quase todos os eventos são inefáveis, desenrolam-se num espaço onde as palavras nunca entram, e os mais inefáveis entre eles são as obras de arte, existências misteriosas cuja vida, ao lado da nossa que se perde, perdura.
        Tendo começado com este aviso, devo ainda dizer-lhe que os seus versos não têm um estilo próprio, embora traiam indícios silenciosos e velados de uma voz pessoal. Os mais evidentes encontram-se no seu último poema, “A minha alma”. Há nele qualquer coisa que quer chegar à palavra e à forma. E no seu bonito poema  “A Leopardi” talvez cresça já uma qualquer afinidade com esse grande solitário. Contudo, os seus poemas não têm vida própria, não são autónomos, nem mesmo o seu último poema ou aquele que dedicou a Leopardi. A sua gentil carta, que acompanhava os poemas, veio esclarecer algumas das falhas que senti ao ler os seus versos sem que nesse momento conseguisse nomeá-las.
        Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Já antes perguntou a outros. Envia-os a revistas. Compara-os com outros poemas, apoquenta-se quando algumas redacções rejeitam os seus esforços. Pois bem, e já que me permite aconselhá-lo, peço-lhe que desista de tudo isso. Está a olhar para fora de si, e é sobretudo isso que não deve fazer agora. Ninguém o pode aconselhar, ninguém o pode ajudar, ninguém. Há uma única via. Entre dentro de si. Investigue a razão que o leva a escrever, veja se ela lançou raízes no lugar mais recôndito do seu coração, pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever. Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever?
        Escave dentro de si até encontrar uma resposta profunda: E se essa resposta for afirmativa, se puder enfrentar esta séria pergunta com um “tenho” simples e forte, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade; a sua vida, mesmo nas horas mais indiferentes e pequenas, terá de ser um sinal e um testemunho deste ímpeto. Aproxime-se então da Natureza. Tente então dizer, como o primeiro homem, o que vê e o que vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite por ora as formas mais comuns e correntes: são elas as mais difíceis, pois só uma grande força, já amadurecida, conseguirá criar uma coisa própria por entre a abundância de boas e por vezes brilhantes prestações. Evite por isso os motivos gerais e prefira aqueles que o seu quotidiano lhe oferece; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé numa qualquer beleza – descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, modesta, e para lhe dar expressão sirva-se das coisas que o rodeiam, das imagens dos seus sonhos e dos objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parecer pobre, não o acuse de pobreza; acuse-se a si próprio, reconheça que não é ainda poeta o bastante para conseguir invocar as sua riquezas; pois para um criador não há pobreza e nenhum lugar é indiferente e pobre. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes separassem os ruídos do mundo dos seus sentidos, teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e imperial, a câmara do tesouro da lembrança. Dirija a ela a sua atenção. Tente levantar as sensações submersas desse passado longínquo; a sua personalidade fortalecer-se-á, a sua solidão estender-se-á até se tornar uma casa ao cair da tarde ou do amanhecer, por onde o ruído dos outros passa à distância. E se depois desse movimento de introspecção, depois deste mergulho no seu próprio mundo, se depois nascerem versos, já não ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não tentará despertar o interesse das revistas por estes trabalhos, pois vê-los-á como propriedade sua, natural e preciosa, como uma parte e uma voz da sua vida. A boa obra de arte nasce da necessidade. È esta origem, e nada mais, que determina o juízo do seu valor. Por essa razão, caro Senhor, não posso dar-lhe outro conselho para além deste: entre dentro de si e sonde as profundezas donde brota a sua vida; é nesta fonte que encontrará a resposta, à pergunta: tenho de criar? Admita a resposta, qualquer que ela seja, sem a interpretar. Talvez venha a descobrir que nasceu para ser artista. Nesse caso, aceite o seu destino, carregue o seu peso e grandeza, sem perguntar por proveitos que possam vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo, tem de encontrar tudo dentro de si e na Natureza a que se uniu.
        Talvez aconteça que, depois desta descida dentro de si e da sua solidão, tenha que renunciar a ser poeta; (como disse, basta sentir que se consegue viver sem escrever para não dever sequer tentá-lo). Mas mesmo então este exame de consciência que o insto a fazer não terá sido em vão. A sua vida encontrará em todo o caso seus próprios caminhos, e que eles sejam bons, ricos e longos é o que eu lhe desejo mais do que consigo dizer.
        O que devo acrescentar ainda? Parece-me que tudo foi sublinhado com a importância devida: Queria apenas aconselhá-lo, por fim, a velar em silêncio e com seriedade pelo seu crescimento; não há perturbação mais violenta do que olhar para fora e esperar respostas exteriores a perguntas a que talvez Sá a sua sensibilidade mais íntima, nas horas de maior silêncio, poderá responder.
        Foi com grande alegria que encontrei na sua carta o nome do Professor Horacek ; tenho uma grande admiração por este amável erudito e uma gratidão acalentada ao longo dos anos. Peço-lhe que lhe transmita os meus sentimentos; é muita bondade dele lembrar-se ainda de mim, e sei dar-lhe o justo valor.
        Devolvo-lhe os versos que amigavelmente me enviou. E agradeço-lhe uma vez mais a sua grande e amável confiança, de que tentei ser mais digno, através da sinceridade e boa-fé desta minha resposta, do que como estranho realmente sou.
        Com estima e dedicação,
                                            Rainer Maria Rilke
         
   


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Pensamento


As  obras  de  arte  são  de  uma  solidão infinita :  nada  pior  do  que  a  crítica para  as  abordar.


domingo, 19 de junho de 2011

Tempos ...


HÁ DIAS ASSIM…


   Enfim! Chegara a Primavera! Aquele era mesmo o dia da chegada, embora anteriormente, por toda a parte se insinuassem pronúncios. Há quase um mês que algumas árvores inauguraram as suas vestimentas rosadas ou brancas a revestir os escuros troncos de Inverno.
   Lá no alto, o sol da tarde sorria, derramando generosamente luz e calor. Os pássaros passavam em voos atarefados enchendo o ar de chilreios e os insectos, na pressa de quem tem que aproveitar ao máximo o tempo, zuniam em caminhos de flor para flor…
Sózinho, no torpor dos seus oitenta anos, António, sentado no banco daquele jardim, tão estranho à sua vida como também o era, aquela terra onde a filha residia e que passara a ser a sua   actual residência, via  passar  mais aquele  dia,  como  tinham já
 passado alguns outros, sem que se habituasse e esquecesse o seu cantinho lá tão longe, onde lhe fora lentamente decorrendo a vida.


Maria de Jesus Pinto


Cerra os olhos,  nasce na sua mente um dia diferente, olha o céu e vê-o translúcido,  um clarão  se reflecte em seu redor como uma nuvem de luz cintilante que o envolve naquela  manta que outrora lhe aquecia o corpo naquelas noites gélidas, em que menino encolhia as pernitas para melhor se aconchegar. Tapava a cabeça, e a enxerga dura transformava-se em baloiço de penas, onde, num vaivém, ouvia o ressonar longínquo do seu fiel amigo, cão corpulento que tinha como missão vigiar a noite na casota fronteiriça da casa.
Naquela data ainda não sabia nada do tempo, era uma sucessão desconhecida  onde as cores se mesclavam com as carícias da mãe e com os afagos um pouco mais pesados, mas na mesma doces, das mãos calejadas do pai.   
A manta foi encorpando, a luz foi-se diluindo pelo caminho, quando voltou à realidade dos muitos anos já passados, ficou feliz por ter viajado no tempo e por estar ali, embora um pouco desenraizado, sentia na filha a extensão do seu amanhã onde ficará  sempre incrustado enquanto o coração bater e a sua lembrança fizer  eco no renovar sanguíneo das artérias. Foi assim com os seus progenitores, que ainda hoje latejam suavemente na sua fronte, e onde ele com ternura acrescida lhe devolve o tempo mágico em que eles  o acompanharam. Levanta-se, e caminhando vagarosamente saboreia o renascer da vida que ainda o não abandonou !!!
9 de Maio de 2011.
Maria José Portugal

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sol do Mendigo




  Olhai o vagabundo que nada tem 
  e leva o sol na algibeira! 
  Quando a noite vem   
  pendura o sol na beira dum valado 
  e dorme toda a noite à soalheira… 
  Pela manhã acorda tonto de luz. 
  Vai ao povoado  
  e grita: 
  - Quem me roubou o sol que vai tão alto? 
  E uns senhores muito sérios 
  rosnam: 
  - Que grande bebedeira! 

                       E só à noite se cala o pobre. 
                      Atira-se para o lado, 
                      dorme, dorme… 


Autor: Manuel da Fonseca em 1940

terça-feira, 14 de junho de 2011

Era assim ...


Selecções da “Gazeta do Sul” - Ano de 1955
“ O que de melhor se publicou em 25 anos”

(II volume)
                                   

Os Cavadores  do grande escritor Tomaz da Fonseca, (enviado  expressamente  para  a “Gazeta do Sul” de sua casa na Serra da Galinha em Maio de 1939).

Não sei se viram já, num planalto, a 700 metros de altitude, uma cadeia humana  - 30 ou 40 cavadores, alguns descalços, todos em mangas de camisa, cabeça ao léu, peito desnudo, batidos pela ventania que, atravessando a Estrela regelada, os trespassa e sacode entre praguedos e blasfémias.
Venho agora de lá, batendo o dente e arrepiado, como cão que viu lobo. É que senti e vi coisa pior, que foi o desespero do homem com a terra, emaranhada e presa pela cepa da urze e a raiz da carqueja, que não cede, às vezes, senão ao quarto ou quinto golpe de enxadão.
Vinte minutos de planalto e os meus sessenta e dois invernos iniciam a fuga, ao passo que eles, de pé firme e mão tente, não cessam de volver, no ar agreste, o aço luzente das alfaias, que sobem e descem, num vai-vém que impressiona pelo que tem de estranho e de trágico.
E andam ali há meses. Desde Março que a rude faina começou e prossegue, inalteravelmente, logo ao primeiro alvor da madrugada, quando nenhum dos pontos do horizonte pode afirmar ainda que o Sol há-de romper ali.
Há dias quis fixar aqueles heróis num quadro,  à moda antiga, mas não me foi possível, ou antes: não encontrei forma alguma poética que pudesse dizer o que sentia, dando ao mesmo tempo o relevo, a cor, a intensidade e a emoção que se desprendem de tais homens e em tão rude mister. Além de que nunca a forma poética me poderia dar todos os cambiantes desta luta.
E lá andam, em fila ou em pequenos núcleos, esbracejando como loucos…
Não os vejo, mas ouço de continuo o choque duro e seco dos enxadões calçados de aço.
Um deles é tão magro que faz medo. E tão tardo na fala que provoca o riso aos companheiros menos compadecidos. Mas não é tardo no arranque da urze: cada enxadada, cada torrão que rola para trás.
No extremo da fila uma criança de 13 anos. Quis devolvê-la à mãe, por me parecer trabalho extremamente rude para tão tenra idade. Suplicou-me com os olhos chorosos: precisava ganhar para comer…
Na sua aldeia, pequena e pobre, ninguém dava trabalho. Ficou e não é dos menos corajosos.
O mesmo não direi do Florêncio, que é um triste, sem pai, sem mãe e sem amigos. Teve uns tamancos, mas desfizeram-se em pedaços. A camisa é um trapo escuro. De quando em quando salta um ganipo que o vento leva. Do chapéu resta a copa, cheia de buracos e rasgões… Se este rapaz é bom, porque não teve ainda quem o quisesse para moço ? Bem sei que nesta serra há muita gente que nunca pede nem serve. Motivos? Talvez orgulho de serrano ou esse estranho culto pela liberdade, que ainda não desapareceu do coração do povo, mesmo entre o simples e bronco da montanha.
Entre todos, porém, o que mais me espantou, quando veio pedir que o incorporasse na fileira, foi o Manco, assim dominado por lhe faltar a perna esquerda, quase desde a bacia: meio palmo de fémur, quando muito.
- E garanto-lhe que não ficarei atrás.
E não ficou.
Quando a raiz lhe prende o enxadão, roga uma praga… e a carqueja salta, num relâmpago.
Há dias o suão fustigou a serra com tal violência que até as pedras rebolavam, encosta além. Pois nunca despegou. Se uma lufada mais violenta ameaçava derrubá-lo, rodava sobre o calcanhar, e com tal ligeireza que não perdia uma pancada.
Não sei se compreendem e avaliam este milagre de equilíbrio. A princípio não podia crer que um mutilado assim pudesse sequer equilibrar-se, quanto mais roçar mato, cavar, arrancar pedras, rachar lenha… E foi preciso ver. Mas hoje creio e conto ao mundo…
Falei-lhe numa perna de pau…
- Era bom, mas custa 500$00, que não tenho.
- Porque não vai pedir de terra em terra…
- Prefiro trabalhar…
Prefere trabalhar, o desgraçado a quem nenhuma instituição de caridade ou assistência viu ainda!
Ontem passei por eles, quando jantavam ao pé da fonte. Os melhor fornecidos comiam juntos, tagarelando sempre. A sopa é o forte. Cada um tem a sua panela, onde deitam a couve ou o feijão, com umas orelhas de bacalhau, e alguns, poucos, uma pequena lasca de toucinho. Os que, porém não tinham nem sopa nem toucinho, nem mesmo o bacalhau, retiravam, sob protexto de um assento melhor sobre a carqueja verde, para esconderem a pobreza, que só lhe permitia a sardinha e o naco de broa. Sardinha e broa todo o dia! E que sardinha, e que broa!...
O vento amainou um pouco, mas o frio persiste. Por quê, estando em Maio e numa zona temperada? É que a Estrela branqueja e, quando a varre aquele vento de Espanha, não há manta nem choupana que nos defenda e abrigue desse sopro infernal… Além de que pairamos a 700 metros de altitude, sem lar… Eu fujo, visto poder fazê-lo. Mas eles?
E descendo as ladeiras, não me sai do sentido a voz desse latino que, em Roma, disse um dia aludindo a outros, igualmente famintos e esquecidos: “Quid futurum est, si nec dii nec homines hujus coloniae  miserantur”? *

Ano XIII – nº 641
* Tradução livre do latim – O que vai acontecer, se acontece que nem os deuses das colónias da piedade, destes homens se lembram.