sexta-feira, 5 de agosto de 2011

... ainda o Limite




     O guião do  último (e inacabado) filme de Paradjanov é, claramente, a « Confissão » de


Uma pessoa que procurava a verdade

« … Eu tinha uma pneumonia dupla. Estava a morrer no hospital e pedi ao médico para me prolongar a vida, nem que fosse apenas por seis dias. Foi precisamente durante seis dias que escrevi o argumento. Nele se fala da minha infância. De quanto Tbilissi  cresceu e os velhos cemitérios ficaram integrados na cidade  e de quanto o nosso luminoso brilhante e radioso governo resolve eliminar os cemitérios e fazer deles parques culturais, isto é, deixar ficar as árvores e alamedas mas retirar as sepulturas e as lápides tumulares. As escavadoras vêm e destroem o cemitério. Então os espíritos vêm ter comigo a casa  -  os meus antepassados porque ficam sem lar. O meu avô, a minha avó, aquela mulher que me costurou a primeira camisa, aquele homem que foi a primeira pessoa a dar-me banho nos banhos turcos. No final eu morro nos braços deles e eles, meus antepassados, sepultam-se. De todos os argumentos que não foram escritos e que não foram postos em cena este é o que eu gostaria de ter realizado primeiro. »

Eis o prólogo ao argumento de « Confissão », escrito em 1969 quando, teve início o calvário de Paradjanov. Argumento que é antes um poema sobre a vida e a morte de uma pessoa que procurava a verdade, seria alterado e aperfeiçoado ao longo dos anos até que surgisse o momento propício para a sua passagem à tela.

As filmagens, em Maio de 1989, duraram três dias. O cineasta foi acometido de uma crise cardíaca e sofreria, seguidamente, a ablação de um pulmão.

Foram três dias de trabalho, que deixaram imagens sumptuosas de cenas rodadas na residência do realizador, situada numa colina de Tbilissi e que agradam particularmente a Fellini, que considera a película muito próxima  do seu « Amarcord ».

A acção do filme reporta-se ao período que se segue à realização de    «Cavalos de Fogo », que fecha o ciclo da Ucrânia, para onde Paradjanov foi trabalhar, em 1954, depois de concluído o curso de realização em Moscovo.

Serguei Paradjanov começa assim o argumento:

« Em 1966 regressei a Tbilissi. Regressei depois de 20 anos de separação da cidade em que nasci em 1924. As montanhas já não crescem… Detiveram-se… Fui ao cemitério Staro-Veriiskoe à espera das sepulturas que vi surgirem…
O cemitério Staro-Veriiskoe  estava fechado para sempre. O cemitério Staro-Veriiskoe está a ser convertido num parque de cultura e lazer.»

« Confissão » é o argumento de um filme constituído por uma cadeia de recordações que foram despertadas na minha memória em frente dos portões fechados do cemitério…


ROL DE ANTEPASSADOS

O rol dos antepassados recordados na « Confissão » é vasto. As personagens de maior importância são a Pessoa, o próprio Paradjanov, a mãe e o pai do cineasta, o leiloeiro, Vera uma colega de escola que sofria de tuberculose, a mãe e o pai dela. A tia Siran, que fazia camisas, Iuri chefe de turma de Paradjanov, a mulher deste, Charo, Ene e Kvase, os curdos que costumavam dormitar perto do conservatório e as mulheres deles. Madame Germaine, nascida no sul de França, os três coveiros, que se distinguem por terem as palmas da mão de cores diferentes e o escultor.

Entre as personagens de menor importância contam-se a enfermeira, as velhas mulheres de cabelos grisalhos, músicos militares, oficiais do exército, pensionistas, as vizinhas que foram ao enterro do pai de Paradjanov com os seus casacos pretos de pele de imitação  -  o uniforme de todas as viúvas de Tbilissi  - o cantor de ópera, a sua ex-mulher, os presos, os milícias, a vendedora de balões, o novo padre da Sé Catedral.
O argumento termina com os protestos e a morte.

« … As escavadoras nivelam o cemitério, jovens de maillots  negros saltam no meio da poeira amarela.
Eu resolvo sair do cemitério. Partir! O que significa esquecer o leilão e tudo o que nele foi vendido que pertencia à minha família.
Esquecer as tristezas da infância…
Esquecer as sepulturas…
Não, não sairei do cemitério! Não suportarei o banimento da infância. Sou absolutamente contra os banimentos e perseguições! Espectros meus! Estou melhor convosco do que com os que vivem. Eu amo-vos mais do que aqueles que me amam!... Meus ciprestes… e raízes dos ciprestes…  eu e vocês somos parentes!
Vós estivestes e estais ligados aos meus antepassados. Durante algum tempo eu e vós crescemos juntos. O tempo enegreceu-nos e a mim embranqueceu-me… Eu sei… Isto é apenas uma medida do soviete da cidade. Aqui, tal como no cemitério Khodjivanskoe, não ficará nada.
Em Março os ciprestes, com o vento, voltarão a assustar os que se procuram uns aos outros na noite.
Mas mesmo assim não consigo sair da zona da poeira. Umas vezes deparo com os baixos-relevos em gesso dos generais do distrito militar transcaucasiano,  e que em tempo estiveram pintados em cor de bronze, caídos por terra, e outros como o urinol de madeira com a porta aberta…
Quem? Quem, além de mim, protesta. Será que seja só eu ?
Não!
José Dias (1) protesta. Ergue-se nas pontas dos pés e agita a bandeira sobre a cabeça.
Protesta contra tudo o que está a acontecer no cemitério Staro-Verijskoe.
Ele, José Dias, protesta contra a mulher que na igreja do cemitério lava roupa numa tina de zinco semelhante a um caixão.
Protesta contra o inválido que dá de comer ao cão na igreja.
Protesta até contra o eu ter morrido na minha infância.
Mas José Dias já passou ao bronze. E eu ainda estou vivo e sufoco no meio da poeira… Sufoco e enfureço-me por não se terem descoberto aquele sentido e aquela imagem da beleza que a pessoa procura e, em resposta ao fel e maldições, a poeira dispersa-se e surgem harpas no cemitério…
Harpas. Douradas. Harpas no cemitério…
Aquilo, precisamente aquilo que eu procurava.
E posso morrer!
Sem pesar!
E morro!
Como morro não é importante…
Só será terrível quando a poeira amarela provocada pelas escavadoras se depositar e eu me transformar num baixo-relevo de terra amarela. E, só ao morrer, sorrio.
Estou feliz por me ter enganado a mim próprio.
Pois não são harpas é um ventre!... O ventre dos pianos vienenses e antiquados que o escultor compra baratos para refundir em barras de bronze das quais depois fará uma escultura do perfil exacto de cada um, mesmo que a fotografia seja de frente.

Mas o que acontecerá se ele me tirar a máscara quando eu já estiver a transformar-me no baixo-relevo amarelo? E, para divertimento, voltar a descobrir o meu rosto?

Não… não o descobrirá. Não tenho nada com que lhe pagar!
Só posso imaginar a verdade.
E posso ouvir o riso que se gera na poeira amarela.
Um riso que cresce e avança para mim!...
E as escavadoras param no meio da poeira amarela e os jovens de «maillots»  negros ficam suspensos no ar a meio de um salto… Abrem caminho a velhas, às nossas avós e bisavós…
Elas - as avós - estão todas vestidas de negro e farfalhantes sedas e crepes.
Compõem os bordados e cofiam os caracóis da sua juventude, esticam os «collants»  negros, descaídos, e escondem cuidadosamente moedas amarelas, com o rosto do imperador de toda a Rússia, nas ligas reduzidas a cinzas e, assim, como uma massa negra, apoiando-se umas nas outras, caminham para mim, passam por cima do meu baixo-relevo amarelo na terra e apressam-se a sair da zona da poeira amarela…
Saem para a zona neutral da pureza e silêncio… e nas pontas dos pés entram no nevoeiro lilás da alvorada de Tbilissi. Caminha de mansinho por Tbilissi sonolenta. Caminham pelas linhas dos eléctricos das avenidas, e no seu rasto, sobre as vias dos eléctricos ficam moedas de ouro perdidas…
Aproximam-se, como se fossem uma só, da caixa que pende de um cabo metálico. Elas, que temem as tempestades, a electricidade, o gás e os painéis de comando dos foguetões e as escavadoras riem-se sobre o painel e batem-lhe com os punhos…
E o painel zumbe! O cabo estica-se! E a caixa, com a porta por fechar, paira em direcção à montanha.
E os nossos antepassados riem à gargalhada por cima da cidade…

Por cima da cidade, em cujo horizonte a poeira amarela se funde com os vapores lilases e elas, as velhas, soltam ao vento os seus «letchaks»(2). E o tule lilás voa sobre a cidade, prende-se no grosso cabo, voa, voa até que se funde com o nevoeiro lilás!
E os jovens! Contraem os músculos, encolhem as barrigas e erguem os braços, de olhos fechados apanham o tule lilás…

              (1)  Personagem provavelmente de origem portuguesa
              (2)  Lenços de cabeça em tule das mulheres georgianas.

Fonte:  -  Jornal de Letras de 14 de Agosto de 1990.
   
                                                 

      

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