sábado, 23 de abril de 2011

o caderno de Saramago


               
Almodóvar

               



C
heguei tarde à movida, quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rímel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e as suas tristezas. Não quero dizer que as movidas sejam tristes por definição, o que eu digo é que têm de se esforçar muito para que não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: "Que faço eu aqui?" Atenção estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para movidas e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da movida madrilena, a perguntar à sua pequena alma  (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis). "Que faço eu aqui?" A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi Volver enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: "Tocaste a beleza absoluta." Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.

Devo concluir. De uma forma de certo inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da movida.



Autor:   José Saramago
Fonte:   Diário de Notícias, 5 de Agosto de 2009.

                                    

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