terça-feira, 12 de abril de 2011

Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é,
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mãe,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães:
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser
   verdade,
enquanto fôr preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

                                                                    António Gedeão


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