sábado, 2 de julho de 2011

Sétima Carta




Roma, 14 de Maio de 1904

Meu caro senhor Kappus

Passou muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me leve a mal; primeiro foi o trabalho, depois incómodos vários e por fim um estado enfermiço que adiaram uma e outra vez esta resposta que havia de ser escrita (era essa a minha intenção) num dia bom e sereno. Agora sinto-me outra vez um pouco melhor (o início da Primavera, com as suas mudanças cruéis e caprichosas, também aqui foi bastante penoso) e encontro por fim ocasião para o saudar, caro Senhor Kappus, e dizer-lhe o melhor que sei e posso, como sempre faço com grande prazer, umas poucas coisas acerca da sua carta.

Como vê fiz uma cópia do seu soneto porque ele me pareceu bonito e simples, como se a forma de silenciosa dignidade em que se apresenta lhe fosse inata. São os melhores versos seus que alguma vez li. E envio-lhe agora essa cópia porque sei como é importante, uma experiência inteiramente nova, reencontrar um trabalho nosso na letra de um estranho. Leia os versos como se lhe fossem estranhos e no seu íntimo sentirá como eles são sua pertença.

Foi para mim uma grande alegria ler e reler o soneto e a sua carta vezes a fio; agradeço-lhe por ambos.

E não desespere da sua solidão por sentir em si um desejo de sair para fora dela. Precisamente esse desejo, se o usar com serenidade e distanciamento, como uma ferramenta, ajudará a estender sobre um território cada vez mais vasto. Os homens (com ajuda das convenções) resolveram todos os problemas de acordo com a lei da maior facilidade, e na verdade com o lado mais fácil da facilidade; quanto a nós, é bastante claro que temos de nos ater à dificuldade; é por ela que se rege tudo o que vive, tudo na Natureza cresce e se defende à sua maneira e cria a partir de si a sua individualidade, tentando ser a todo o custo o que é e contra todos os impedimentos. Sabemos pouco, mas que temos que nos ater à dificuldade é uma certeza que nunca nos abandonará; é bom ser solitário, porque a solidão é difícil; que uma coisa seja difícil deverá ser mais uma razão para a fazer.

Também amar é bom; porque o amor é difícil. O amor de uma pessoa por outra: é talvez essa a maior dificuldade que conhecemos, o extremo, a última prova e teste, o trabalho que todos os outros trabalhos apenas preparam. É por isso que a juventude, que é principiante em tudo, não pode ainda amar: tem de aprender primeiro. Com todo o seu ser, com todas as suas forças, concentrada no seu coração solitário e aflito que bate em movimento ascendente, tem de aprender a amar. Mas o tempo de aprendizagem é sempre longo e fechado, e por isso para quem ama o amor é solidão por muito tempo, pela vida fora, é um isolamento que ascende e se aprofunda. Amar não tem de início nada que ver com abrir-se, entregar-se e unir-se a outra pessoa ( pois o que seria uma união do que ainda não se esclareceu nem completou, do que ainda se subordina…?), é antes uma ocasião sublime concedida ao indivíduo para que ele possa amadurecer, tornar-se qualquer coisa dentro de si, tornar-se mundo, tornar-se mundo para si em nome de um outro, é um imperativo grande e imodesto que faz dele um eleito e o chama para a distância. É só nesse sentido, enquanto injunção para trabalhar dentro de si («escutar e martelar dia e noite»), que a juventude poderá usar o amor que lhe é dado. A abertura e a entrega e toda a espécie de comunhão não é para ela (que terá ainda de poupar e guardar por muito, muito tempo), é o último estádio, é talvez qualquer coisa que a vida humana ainda mal pode alcançar.

Mas nisto os jovens (impacientes por natureza) erram tantas vezes e tão gravemente: lançam o corpo contra outro corpo, quando conhecem o amor, e dispersam-se, tal como são, em todo o seu desalinho, desordem e confusão… Mas o que pode nascer daqui? O que pode a vida fazer deste amontoado de gente rasgada ao meio a que eles chamam comunhão e a que gostariam de chamar felicidade e, se for caso disso, o seu futuro?  Cada um perde-se por causa do outro e perde o outro e muitos outros que estariam ainda para vir. E perde o distante e o possível, troca o movimento de aproximação e fuga de coisas promissoras e quase inaudíveis por uma perplexidade infecunda donde nada poderá nascer; nada para além de uma certa aversão, desilusão e pobreza e da vontade de escapar para uma das muitas convenções que, como abrigos colectivos, povoam este perigoso caminho. Nenhum outro domínio da vida humana está tão repleto de convenções como este; temos à nossa disposição bóias de toda a espécie e barcos salva-vidas; a sociedade soube criar inúmeros refúgios pois estando inclinada a ver a vida amorosa como um prazer, tinha também de a oferecer com todas as facilidades; barata, sem perigo e segura, como são os prazeres públicos.

É certo que muitos jovens, ainda que amem erradamente, i.e., apenas entregando-se e amando sem solidão (e a maioria ficará por aqui…), sentem o peso de uma falta e querem dar ao estado em que se encontram  uma forma própria e pessoal, tornando-o capaz de viver e de dar frutos; pois a sua natureza diz-lhes que as questões de amor, menos ainda que todas as outras coisas igualmente importantes, não podem ser resolvidas em público nem com concessões; que são questões – questões prementes entre uma pessoa e outra – que em cada caso exigem uma resposta nova, particular, estritamente pessoal; mas como podem eles, que estão já enredados, que não conseguem separar-se nem distinguir-se e que logo já nada têm de próprio, como podem eles encontrar uma saída para fora de si, da profundeza de uma solidão já arruinada?

Agem por ignorância partilhada e se, no melhor dos casos, querem evitar a convenção mais óbvia (como seja o casamento), caem nas presas de uma solução convencional não tão ruidosa mas igualmente mortífera; porque nesse momento tudo á volta deles é convenção; numa união conturbada e precocemente engendrada todas as acções são convencionais; cada circunstância a que esta confusão conduz tem a sua própria convenção, por mais incomum (ou seja, imoral, na acepção vulgar) que possa parecer; na verdade, até mesmo a separação seria neste caso um passo convencional, uma decisão impessoal, ditada pelo acaso, sem força nem frutos.

Quem medita seriamente descobre que, como acontece com a morte, que é difícil, também a dificuldade do amor não encontrou ainda resposta nem solução, nenhum indício ou caminho; e para estas duas tarefas, que carregamos e transmitimos ocultamente sem as cumprir, não é possível deduzir nenhuma regra comum que tenha por fundamento o acordo dos homens. Mas, na medida em que tentemos viver como indivíduos, estas grandes coisas serão para nós, indivíduos mais próximas. As exigências que o difícil trabalho do amor impõe ao nosso crescimento são maiores que a vida, e nós, meros principiantes, não estamos à sua altura. No entanto, se resistirmos, se aceitarmos esse amor como um fardo e como um tempo de aprendizagem, em vez de nos perdermos no jogo fácil e leviano com que os homens se escondem da seriedade mais séria da sua presença no mundo, talvez aqueles que virão muito depois de nós sintam um pequeno progresso e tenham o seu fardo mais aliviado; isso seria já muito.

Só agora conseguimos observar sem preconceitos e de forma objectiva a relação entre um indivíduo e um outro indivíduo, e não há ainda um modelo que guie as nossas tentativas para viver esta relação. E, no entanto, as mudanças do tempo trouxeram já algumas coisas que assistirão os nossos passos melindrados de principiantes.

A rapariga e a mulher, neste seu novo e próprio desenvolvimento, imitarão o jeito e os vícios dos homens e copiarão as profissões masculinas apenas por algum tempo. Uma vez vencida a insegurança destas transições ver-se-á que esta multiplicação e constante mudança de disfarces (quantas vezes ridículos) ajudarão as mulheres a depurarem a sua natureza das influências desfiguradoras do outro sexo. As mulheres, em que a vida mora e perdura de maneira mais imediata, fértil e confiada, ter-se-ão no fundo tornada pessoas mais amadurecidas, pessoas mais humanas, quando comparadas com a leveza do homem que é incapaz de penetrar a superfície da vida com o peso de um fruto carregado no ventre, que é demasiado petulante e precipitado para dar valor ao que julga amar. Esta humanidade da mulher, moldada pela dor e pela humilhação, será trazida à luz do dia quando ela se despir das convenções da feminilidade estrita, ao longo das metamorfoses da sua condição exterior, e os homens, que hoje não pressentem ainda esta mudança, serão surpreendidos e abalados por ela. Chegará o dia  (e nos países nórdicos temos já sinais evidentes que anunciam e iluminam esse dia) em que surgirão a rapariga e a mulher cujo nome já não designa nada que se oponha ao ser masculino, mas antes qualquer coisa que existe para si, qualquer coisa que não fará pensar em complemento ou limite, mas apenas na vida e na presença no mundo: o ser humano feminino.

Este progresso, contrariando de início a vontade dos homens ultrapassados, trará uma metamorfose da experiência do amor, que a mudará desde o seu fundamento até lhe dar a forma de uma relação entre um ser humano e outro ser humano, e já não entre um homem e uma mulher. E este amor mais humano (que se consumará num movimento infinitamente atencioso e discreto, e bom e claro, de prendimento e libertação) será semelhante àquele que arduamente preparamos e pelo qual lutamos, o amor de duas solidões que se protegem, delimitam e saúdam.
E mais o seguinte: não julgue que aquele grande amor  que lhe foi imposto em rapaz se perdeu; tem a certeza de que naquele tempo não terão amadurecido dentro de si desejos grandes e bons e princípios que ainda hoje regem a sua vida? Creio que, se esse amor perdura tão forte e poderoso na sua lembrança, é porque foi ele a sua primeira experiência profunda de estar só e o primeiro trabalho interior que fez na sua vida. Os melhores votos, caro Senhor Kappus!

O seu,

Rainer Maria Rilke


 Soneto
        
Pela minha vida treme sem lamentos
            Sem suspiros uma dor que é negra e funda.
            Dos meus sonhos a neve pura em flor
            Consagra os meus dias de silêncio.
           
            Mas quantas vezes cruza o meu caminho
            Uma pergunta grande. E eu pequeno
            E frio por ela passo, como um lago
            Com águas que medir eu não me atrevo.

            E a dor desce então em mim, tão turva
            Com o breu sem brilho das noites de estio
            Que uma estrela aclara  -  aqui e ali  -  :

            As mãos tacteiam em busca de amor
            E a alma quer dizer em oração
            Os sons que a boca ardente não encontra…

            Franz Kappus


        
         

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