quinta-feira, 28 de julho de 2011

OUTROS TEMPOS ...




 jOSÉ CARDOSO PIRES
 

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.Crónica

À Mesa dos Dias

        Conversámos pela última vez lá em casa, semanas antes de o levarem inesperadamente para o hospital onde iria a morrer. Sttau Monteiro falou então de memórias, coisas datadas, como quem punha em ordem um itinerário vivido. Com um enorme buldogue a seus pés e um cigarro na mão, pareceu-me um homem exilado num refúgio final.

        Luís Sttau, o do horizonte povoado de projectos, agora que restava dele? Serenidade. Desinteresse. Nem um sorriso, nem um daqueles parênteses de humor que davam cor à amizade e que iluminavam o nosso quotidiano com reflexos de libertação. Nada. Ouvia-o e o que ouvia era um discorrer baço sem o contraponto da surpresa e efabulação que dantes o tornavam único entre nós todos.

        Mais tarde, telefonou-me a perguntar por datas, pormenores, casos avulsos  -  as memórias, outra vez. E pela preocupação e rigor e, pelas minúcias que estava a inventariar em solidão, pressenti que procurava fechar a conta-corrente dum período ou duma vida. Vi depois que sim, quando, quase cego e sem fala, no leito de morte do Hospital de São Francisco, se recusava a comer e a receber tratamento, e desse modo, pensei, procurava abreviar o seu fim.

        Agora leio num jornal que o editor do Luís Sttau Monteiro anuncia “À Mesa do Dia”, uma obra póstuma de memórias gastronómicas, e sobressalto-me: memórias gastronómicas? Do mais fundo de mim vem-me o pânico de que, para um público de superfície, este seu último original possa figurar como o selo dum cronista na linhagem de um Brillat-Savarin e não como a obra marginal dum escritor creditado pelos romances que nos deixou e pela renovação que imprimiu ao teatro português.

        Do prazer e do significado cultural da mesa, deixou Sttau Monteiro uma imagem largamente divulgada na revista “Almanaque” e n’ “O Jornal”. Isso sabe-se. Da sua arte de cozinhar poderão os amigos atestar o ponto de apuro e as subtilezas do paladar. Mas na descrição da mesa do vinho, as crónicas do grande dramaturgo de “Felizmente Há Luar” estão longe da exigência e do talento formal dos textos de José Quitério, um mestre.

        Por isso, para Sttau Monteiro, a Mesa Maior  foi a da Escrita. Essa, a da prosa que fez ficção, e a mesa do convívio a qualquer hora, desde o café com amigos numa pastelaria da Rua da Misericórdia às reuniões de redacção do “Almanaque” ou aos whiskies de bar em bar onde a sua imaginação e o seu humor se abriam como um estimulante criativo para resistirmos ao terror da cristianíssima ditadura desses tempos.

        Foi a uma mesa da esplanada do Narciso em Carcavelos, lembro-me bem, que ele me falou pela primeira vez do seu desejo de escrever. (Já lá vão, quê?, trinta e tal anos, nem sei.)

        “O que custa na literatura é que só tarde demais se sabe se valeu a pena”, disse-me ele então.

        Era Primavera. Diante de nós, na praia, andava um homem solitário, encavalitado numas andas, com o olhar perdido no mar.

        Outra mesa: ao fim da tarde, no Bar Carioca, uma estação de prostitutas trabalhadeiras e de espírito doméstico. Aí é que nós, com o Alexandre O’Neill, perpetrávamos número a número as mal-aventuras  do “Almanaque”.  A whiskies a preço módico, segredávamos política, ridicularizávamos os provincianismos oficiais e os bonzos consagrados e demonstrávamos que a austeridade era a capa do medo e da ausência da imaginação. (Vivíamos, não se esqueça, no Reino de Pacheco).

        Sttau iluminava-se de imediato e punha-se a cavalgar ideias e, no dia seguinte, era vê-lo à mesa da redacção, naquele seu modo espontâneo de narrar que o tornou inconfundível. Escrevia em à-vontade e sem fadiga. Uma escrita quase automática que o celebrizou nas suas “Crónicas da Guidinha”, mas que, no fundo, se mantinha nos romances que nos deixou, através do discorrer directo da narração e do desenfado com que recusava o efeito formal.

        Sim, para ele, contar, fabular, era um acontecimento natural. Vendo bem, foi isso que fez toda a vida em conversa ou ao correr da escrita. Era uma voz  “ad libitum”  muito casual, muito dele, que ocorria em todas as Mesas do Dia do seu roteiro de escritor, desde o diálogo entre amigos até à solidão do papel.

        Essa voz, hoje calada para sempre porque se desencantou do Dia para se refugiar na Noite, permanece junto de nós. É que podemos ouvi-la, lendo-a, e com o mesmo encanto e com a mesma saudade com que a ouvimos ainda ontem.

Fonte:   Público Magazine, 8 de Agosto de 1993.  

   

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