quarta-feira, 6 de julho de 2011

Décima Carta

          
                                    


Paris, no segundo dia de Natal de 1908

        Há-de saber, caro Senhor Kappus, como fiquei contente ao receber a sua bonita carta. As notícias que me dá  -  reais e dizíveis como agora voltaram a ser  -  parecem-me boas. Gostava de lhe ter escrito estas palavras expressamente para a noite de Natal; mas, para além do muito trabalho que este Inverno me ocupa sem interrupção, a velha celebração chegou tão depressa que quase não tive tempo para resolver os assuntos mais prementes, quanto mais para escrever.
        Mas pensei muitas vezes em si nestes dias de festa e imaginei como deve sentir-se tranquilo no seu forte solitário entre as montanhas vazias, onde se despenham aqueles grandes ventos meridionais que parecem querer devorá-las em grandes pedaços.
        Deve ser imenso o silêncio onde esses ruídos e movimentos encontram um espaço, e quando penso que a presença do mar distante vem juntar a tudo isso o seu eco, talvez como o som mais interior desta harmonia anterior à História, só me resta desejar-lhe que deixe trabalhar em si, confiado e paciente, essa grande solidão, que nunca mais poderá ser apagada da sua vida; que terá um efeito decisivo, prolongado e silencioso, como uma influência anónima, sobre tudo o que tem ainda para viver e para fazer, um pouco como dentro de nós corre sem parar o sangue dos nossos antepassados, que se cruza com o nosso para dar forma ao ser único e irrepetível que somos em cada volta das nossas vidas.
        Sim, fico contente por saber que tem consigo esta existência sólida e dizível, este título, este uniforme, este serviço, todas as coisas delimitadas e apreensíveis que, nesse ambiente, com um grupo isolado e pouco numeroso de homens, ganham seriedade e necessidade, que encontram uma aplicação vigilante e que, a despeito da ligeireza e da perda de tempo da profissão militar, e não só admitem como na verdade educam uma atenção independente. E  que encontraremos circunstâncias que trabalham em nós, que  de tempos a tempos nos põem diante das grandes coisas da Natureza, é tudo o que é preciso.
        Também a arte é apenas um modo de viver, e podemos preparar-nos para ela, sem o saber, vivendo como vivermos; em tudo o que é real estamos mais próximos e somos mais afins dela do que nas irreais profissões semi-artísticas que simulam uma proximidade com a arte, assim a negando e atacando na prática, como é o caso do jornalismo, sem excepções, e de quase toda a crítica e de três quartos daquilo a que chamam  e insistem em chamar literatura. Numa palavra, fico contente por saber que v. venceu o perigo de cair nisso e que algures numa realidade inóspita se mantém solitário e corajoso. Que o ano que agora chega o assista e fortaleça no seu propósito.

 Sempre seu,

R.M.Rilke

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