domingo, 17 de julho de 2011

Eram assim os Jornais



Introdução


      Desde  sempre  leitora  compulsiva,  o mais  fácil e menos dispendioso, eram os Jornais, onde tive oportunidade de me confrontar alegremente com Grandes Escritores  que  até hoje permanecem na minha memória, como matéria prima dos sonhos  que  povoam  o meu  imaginário.  Quase todos, os Jornais, tinham uma área destinada à literatura, por vezes diária, (mesmo diminuta) onde poderíamos vogar ao sabor  da  criatividade  de cada  autor.

      Havia  no  “O JORNAL” uma página de Leitura,  onde  um  escritor escolhia um conto de outro escritor. Assim,  acompanhou-me  ao  longo  dos  anos  um conto escolhido por Fernando Namora da escritora Maria Archer,  sobre  os  quais  vou divagar.  É minha obrigação dar a conhecer aos mais jovens e interessados, épocas não muito remotas, mas que são marcas saudosas, não saudosistas,  dum  tempo  onde  os afectos eram  um  Templo donde se “comandava a vida”.



LEITURA
Um conto escolhido por Fernando Namora

           
Por muito que isto desrespeite certos analistas literários de faro no vento, persisto que não há texto sem contexto, seja porque este restitui àquele o seu dinamismo, seja porque cada obra tem por detrás e aos lados  uma soma complexa de referências que lhe explicam a modelação e sem o conhecimento das quais o seu significado  mais das vezes nos escapa. Além de que uma obra tem de ser ajuizada tanto pela atmosfera social que a gerou como pelo que dela repercutiu nessa mesma sociedade. Texto e contexto formam pois, um ----------- (1) ------------ comunicante.
Daí terem-me parecido saudáveis as agudas considerações feitas há tempos por Alberto Ferreira, que não hesitou em falar de  «conspiração linguística» alertando-nos para o  «centro de ritos» e de observações laboratoriais que, entre nós, exacerbados imitadores de mestres dogmáticos, vão transformando o estudo da literatura num  «hospital das letras» onde todos acabaremos por curar o nosso anómalo prazer da leitura. Será mesmo de admitir, pelo que se observa, que o pobre estudante iniciado na coisa literária, para quem cada texto se associa a uma anatomia cifrada num vocabulário cabalístico, com «sintagmas»,  «conotações»,  «denotações»  em cada parágrafo, assim esfriando toda a participação afectiva que é a matriz da comunicabilidade, será de admitir, dizia, que esse iniciado à força não quererá ouvir falar tão cedo em literatura no dia em que o libertarem de tais dissecações a cinzel frio, pelas quais o ensinaram a ver num livro um objecto de tripas esventradas.
            Por isso, ainda, retive as advertências de um Álvaro Pina, as dizer-nos que  «há gente nas universidades e fora delas, para quem a teoria da literatura pouco ou nada tem que ver com os textos literários, mas apenas com ideias sobre literatura».
            Penso, todavia, que esta polémica (entre nós, aliás, nem a tal chegou), não tarda que perca sentido. A moda está na fase agonizante, pelo menos lá nas paragens donde nos vem a receita e a força para impormos tudo o que é figurino de papistas. È essa a vantagem dos modismos  -  assim como vêm, impetuosos, sectários, impantes, assim se vão. E talvez, pois, estejamos prestes a recuperar, para cada texto, a sua moldura reveladora. E o gosto de com ele dialogarmos, sem o recurso a uma pauta decifradora.   
            E agora, pergunte-se: a que vem o palavreado, quando se trata, afinal e apenas, de escolher um conto e de dizer o porquê da escolha? Porque, na opção a que fui tentado, influiu quase só o contexto e bem pouco o texto.
            Explicar-me-ei. Há escritores que, num certo período, estão na crista da onda e logo depois ou gradualmente desaparecem da nossa atenção, da nossa estima, e, por fim, até da nossa memória. Ocorrem factos, circunstâncias, enredos que fazem e desfazem reputações, tendo-nos como protagonistas, cúmplices ou inocentes espectadores desse caprichoso gráfico da sociologia da literatura. Dá-se, em suma, a interferência da peripécia justa ou injusta na trama literária, que aliás nunca foi dada a respeitar previsões, excitando-se com as surpresas. E foi assim que num destes dias o nome de Maria Archer emergiu dos confins  do ------------(2)------------  ele todo um tempo ainda recente e já tão enevoado.
            Aqui há trinta e tal anos Maria Archer tinha leitores e sobravam-lhe
os aplausos da crítica. Como pessoa e como escritora era alguém na cena intelectual portuguesa. As suas crónicas no Sol e no O Diabo límpidas e bravas, testemunhavam-lhe a personalidade aguerrida, e os seus contos, novelas e romances não paravam de reeditar-se, pois havia neles a narradora fluente, de um raro vigor, e a denúncia de uma sociedade fechada e hipócrita, em particular pelo que respeitava à situação da mulher. A isto deve acrescentar-se que Maria Archer, embora de temperamento às vezes borrascoso, fazia do companheirismo uma regra do seu agir. Posso dizê-lo por mim.
            E ao evocar essa época, vara-me a dúvida sobre se estarei a falar de coisas sucedidas há anos, há séculos, ou, simplesmente, de pessoas e coisas só existentes na minha imaginação. Quem conheceu Maria Archer? Quem a leu, quem dela está lembrado? Que combates e ilusões a levaram ao exílio brasileiro? Que tempo foi esse que tão morto parece? De que modo fomos coniventes no silêncio de indiferenças que apagou a obra de Maria Archer e encerrou a sua autora num asilo que ninguém sabe qual ou ninguém refere? Maria Archer, ou o que dela resta, vive ainda  -   mas é um viver que, para um escritor, é a pior das mortes.
            O conto que ides ler não é uma obra-prima e a Maria Archer escritora está muito acima dele. Mas a extensão é aqui um parâmetro a considerar e, entre o que havia à mão, tive que escolher uma peça que, sendo característico do estilo directo, eficaz, da autora e do seu mundo vivencial, respeitasse as dimensões a que o espaço obriga.
            Por último, anoto que este pretexto para trazer Maria Archer ao nosso distraído convívio poderia aplicar-se a tantos outros nomes, desde um Vergílio Godinho a um Manuel do Nascimento, ambos, de resto, contistas de primeira água.

Fernando Namora



A ÚLTIMA AMANTE

Maria Archer

           
Os setenta anos do meu amigo José Gomes são duma elegância aprumada de eterno rapaz. Eu mesma, que o conheço, desde a minha longínqua infância, sempre maduro e grisalho, eu mesma esqueço que o José Gomes é um velho.
            Gosto de conviver com o José Gomes. No Verão, à hora macia do anoitecer, apareço muitas vezes na esplanada da avenida onde ele tem mesa habitual, tomamos uma cerveja e conversamos. Se estamos sós confessamo-nos mutuamente, francamente, socrasticamente, numa sondagem de curiosidade pelos domínios ignotos da outra metade do género humano inteiramente dignificada pela benevolência e a compreensão. É ele um dos raros homens que me fala, com verdade e naturalidade, do mecanismo psíquico da vida masculina. É ele um dos raros homens que me ensinou a desculpar o que não compreendo nos homens.
            Quando eu, já eivada de sofismas, comecei a considerar o José Gomes  «um caso literário», ele, no declive dos sessenta, amava as rapariguitas. A sua líbido necessitava da transfusão vital da mocidade. Como o velho da Bíblia, aquecia-se ao calor humano. O dinheiro sumia-se-lhe em pequenos presentes de meias, luvas, perfumes, um vestido ou sapatos às mais exigentes. Volúvel por natureza e volúvel por necessidade, borboleteava de flor a flor, esgotando o fogacho em poucos dias. Escolhia as aventuras na rua, no mundo rasteiro que roça as mulheres da rua mas contudo não tem ainda carácter profissional. Certas empregadas de balcão, costureiras, floristas, as raparigas que, dado o meio-dia, saem da gaiola para almoçar, as raparigas magritas, de saia curta, boca pintada, cabelos a bater nas costas, andar saltarilho, resposta pronta, que enxameiam o Chiado e a Baixa na hora do almoço, esgotavam as suas últimas ardências. Faziam-se desejar, faziam-se namorar, davam-lhe o gosto da aventura e não deixavam o encargo de nenhuma responsabilidade. José Gomes almoçava tarde porque passava o tempo, entre o meio-dia e as duas, a bater as ruas da Baixa, a subir o Chiado, na peugada das andorinhas. Era galanteador, era atrevido no dito brejeiro, atraía, prendia, talvez fascinasse as estouvadas com manhas de serpente. Havia um namoro breve, de dias, pelos restaurantes e pastelarias  da Baixa, uns presentes modestos, uma escada escura que se sobe em ligeireza e se desce com fadiga  -  e a aventura findava no pó, terra, cinza, nada de todas as desilusões.

            As minhas estadias em África são separações que equivalem a períodos de morte. Anos e anos em que perco de vista os amigos, anos e anos em que a vida deles e a minha se desliga de todo o contacto. Parto sem dizer adeus, chego sem prevenir da viagem. Por isso, numa tarde de Verão, após três anos de ausência, procurei o José Gomes na sua mesa habitual, na esplanada da avenida.
            Lá estava, bebendo a cerveja do costume. Vestia com esmero, como sempre, mostrava-se magro e aprumado, tal como eu o deixara. O tempo afeiçoara-o sem o marcar com o mínimo ferrete de decadência. O meu amigo José Gomes continuava a ser um senhor elegante, agradável de ver, de idade indeterminada sobre o meio século. Recebeu-me efusivamente e reatámos com entusiasmo a intimidade da nossa convivência.
            A conversa foi sôfrega. Três anos de vida a pôr em dia, a apresentar em pípulas concentradas, a dar rapidamente em essência, em luz, e nas clássicas dimensões da geometria espacial. Mas ainda eu não findara a cerveja nem se esgotara a mútua curiosidade preliminar, apareceu, entre as mesas, a vender lotaria, uma mocinha viçosa, bonitinha, bata de cetim azul-celeste, meias finas, sapatos janotas, o cabelo flamante ondulado num jeito de vampe cinemática. O José Gomes precipitou a mão nervosa sobre o peito, rebuscando o monóculo, encaixou-o na órbita, e fixou a beldade com um ar de abutre, um olhar em que reconheci, uma vez mais, o eterno Tenório insatisfeito.
            Senti a minha presença recuada para segundo plano. Calei-me, deixei o José Gomes absorver-se no êxtase momentâneo. Um camião imobilizou-se à ilharga da placa arborizada, vomitando jactos de gás fétido e estremecendo com as explosões. Os ardinas invadiram o local, gritando o último jornal da tarde. O chilreio dos pardais sincronizou-se com a sinfonia vespertina. E a rapariga das cautelas, no seu luxo barato de pobre, ia ------------(3)------------ pelos ombros dos homens, intrometendo conversa e fazendo negócio. O José Gomes era uma autêntica figura do museu Grevin. Veio então a aragem da tarde, sacudiu o dossel de ramagens e as folhas secas caíram em cima das mesas. Uma palma sedosa, dum amarelo vivo de insecto, ficou a tremelicar no rebordo do copo dele.
            Num gesto breve sacudi o farrapo colorido. Saltou do copo, virou-se, desceu sobre a mão do José Gomes. O toque leve bastou para o despertar. Guardou o monóculo, ajeitou o seu cordão de seda. Reatou o assunto da conversa, muito naturalmente:
            - Então?
            Sorri, sem lhe responder.
             Ele recompôs o cordão do monóculo e levantou os olhos para os meus, interrogando-me. A realidade obscena do velho libidinoso, da prostituta mascarada, desaparecia, ante mim, sob véus, de que eu mesma não definia nem a espessura nem a cor. Discretamente, indicando a mocinha, perguntei-lhe baixo:
            - Outra conquista?
            Uma expressão de dignidade triste envelheceu-o, subitamente:
            - Na minha idade?
            Bebeu um gole de cerveja, de olhos baixos, mais grave e mais distante. Depois acrescentou, num jeito de censura amigável:
            - Estou velho… Reformei-me…
            Então pensei na idade do José Gomes e em que, na verdade, ele era um velho. Um velho bonito, cuidado, elegante, mas um velho. Calei-me porque há momentos em que os pensamentos nos colam os lábios com imposições que se não vencem pela vontade.
            A rapariguita das cautelas passou pela nossa mesa em pé de vento, chamada de longe por um cliente. O José Gomes voltou-se na cadeira para seguir o rasto luzidio da sua bata de cetim azul. Recostou-se e concluiu no mesmo tom apagado:
            - Há dois… há quase três anos ainda eu me julgava rapaz.
            - Eu continuava calada ----------(4)------------confidência, mas os gritos da rua não nos deixavam saborear a volúpia do silêncio, entravam em diálogo comigo e com ele. A cauteleira tornou a passar por nós, exalando pecado venal, e o José Gomes disse lealmente apontando-a com o olhar:
            - Foi por causa de uma fúfia deste tipo…
            Mirei de novo a vendedeira, o seu arranjo catita de rapariga popular, todo feito de exterioridades que deixam, intacto, o primitivismo intrínseco. Uma boneca muito fresca, muito nova, ladina, a cheirar a agro saloio, a água-de-colónia barata, e a fêmea fácil, a prazer comprado como uma cadeira de teatro. Mas havia a frase alegórica do José Gomes:
            - Foi o quê José Gomes?
            Acendeu o cigarro. Chupou uma fumaça lenta, funda contemplativa. Poisou a mão no rebordo da mesa e o cigarro ficou a arder, esquecido entre os dedos trémulos.
            - Há uns três anos… eu andava tonto por causa de uma garota desta raça… Era do meu alfaiate, em São Roque… Uma costureira… Nessa época eu habitava, na Baixa, num appartment  independente… Porta na escada…
            A rapariga não vinha à rua a não ser na hora do almoço… Meio-dia a soar e já eu rondava pelo sítio, na caça… Elas saiam em grupo, eram muitas, só se separavam mais abaixo, conforme iam encontrando os vários rapazes que as esperavam…
            A Raquel, na ocasião, não tinha namoro… Levava a lancheira na mão e ia almoçar à rua das Flores, a casa de uma amiga, para se servir do lume…
            Conhecíamo-nos… Eu era freguês antigo… Comecei por lhe oferecer de almoçar… Ia na minha frente, eu a segui-la… Ela tinha as pernas delgadas, nervosas, os pés pequenos, o passo vivo entontecia-me… Ia atrás dela, de olhos fitos no movimento lesto dos seus passos, hipnotizado pelo vaivém dos pés ligeiros, atraídos por aquelas pernas como por um íman… Deu-me paleio, troça, isto e aquilo, mas custou-me a convencê-la a ir comigo ao restaurante… A ideia de que ela era séria, de que ela se defendia, de que ela era um tesouro fora do alcance  «dos outros», estimulava-me até à obsessão…
            Uma garota… dezasseis, dezassete anos… Eu não seria o primeiro, evidentemente, mas ela ainda ressumava o viço da flor em botão, a graça do objecto por estrear… Cheirava a novo, a fresco, a vida no começo, a vitalidade sem gasto… Eu olhava-a e embebedava-me dessa graça, dessa frescura, desse lustro de novo, eu olhava-a e sentia-me rapaz, eu entontecia e esquecia, que havia, entre nós, meio século de vida a separar-nos… Não a largava… Esperava por ela às horas da saída, na rua, parado pelos portais, pelas esquinas, ridículo, velho ridículo, a julgar que fazia a mesma vista dos rapazes que esperam a saída das raparigas…
             Nos momentos próprios dei-lhe uns presentes… Chocolates, água- de-colónia, uma caixa de lenços… A Raquel agradecia, mostrava-se contente, mas a sua reserva continuava e eu percebia que lhe não dava o bastante… Um dia falou-me nas meias de vidro, disse-me que precisava de meias, e eu prometi-lhe as meias, com uma única condição  -  que me deixasse calçar-lhas…
            Andámos assim uns dias, de torça pegada, eu a prometer-lhe as meias, ela a fazer-se rogar… Por fim eu comprei as meias… Das melhores, das caras… Um saco quadrado, de papel transparente, com um trapinho claro, imaterial, bem acomodado lá dentro… Mostrei-lhas… A Raquel pegou no saco de papel, mirou as meias e fez-se muito corada.
            - Vamos calçá-las?  -  disse eu exaltadíssimo .
            Inclinou a cabeça, numa aceitação muda e submissa. Mas corrigiu logo:
            - Nada de abusos, ouviu?
            Meti-a num táxi, de afogadilho, contando os minutos. Seguimos para o meu appartment… Um terceiro andar, a escada negra… Ao lado dela, no escuro, já a sentia minha e ao meu dispor, o que me apetecia beijá-la, apertá-la nas mãos!...
            Mas subia e descia gente dos outros andares, fui recatado… Segui à frente, ela vinha andando atrás, intervalada por um lanço de escadaria…
             Nessa época, já com o coração fatigado, eu subia habitualmente a escada devagar, muito devagar, pondo os dois pés num degrau antes de alcançar o outro… O médico recomendava-me que não poupasse o tempo quando ia subindo a escada… Mas, com a Raquel atrás, cheguei ao terceiro andar em passo rápido e sem –(5)--- de fadiga… O meu sangue corria veloz, eu transbordava de ardor, de juventude, de euforia,,, O som dos passos da Raquel, feito eco dos meus passos, acicatava-me, impelia-me, transformava-se em asas que me levavam… Abri a porta sem rumor, entrei, ela entrou num sussurro leve do vestido… Fechei a porta de repelão e tornei-me num louco desvairado… Apertei a Raquel na tenaz dos meus braços, sufoquei-lhe a boca num beijo feroz, caímos os dois em cima de não sei de quê…
            A mão poisada no rebordo da mesa crispou-se num movimento brusco. A cinza do cigarro espalhou-se em redor. O José Gomes abafou uma praga:
            - Queimei-me!
            Esquecera o cigarro, a brasa tocara-lhe nos dedos. Mas aproveitou a oportunidade e acendeu um outro. Chupou uma longa fumaça. Ficou com o cigarro nos dedos e poisou novamente a mão no rebordo da mesa. Os seus olhos procuraram a bata de cetim da cauteleira, sedentos do seu vulto evocador e sugestivo. Ajeitou o monóculo, fixou-a. Viu-a distante, ao fim da esplanada, derriçando com os clientes. A face apergaminhada  tremeu, o monóculo deslizou, e o José Gomes baixou a cabeça, considerou longamente o feitio dos seus próprios sapatos.
            Julguei a história acabada. Afinal, uma história vulgar. Fiz um movimento para me erguer da cadeira. O José Gomes deteve-me:
            Já agora … Oiça o resto…
            Recostei-me. Na aragem da tarde as folhas bailavam sobre os meus cabelos. O ar azulava-se. Nas vidraças dos prédios recortavam-se os rectângulos doirados das primeiras luzes. A bata azul da cauteleira era um pingo de tinta na luz azulada. A voz de José Gomes enrouquecia:
            - É claro, na minha idade , nenhum homem pode gabar-se de não saber o que são certas desilusões… É claro, eu sabia de tudo, já tudo tinha passado por mim… Mas a verdade é que, até então, sob o impulso da vontade, da insistência, da exaltação, os meus nervos acabavam por cumprir o que se lhes exigia… Mas nesse dia, dolorosamente, a ardência não se transmitia do plano imaginativo à realidade somática… A vergonha da velhice, a humilhação da velhice, apossavam-se de mim e amarfanhavam-me … As bagas do meu suor caíam na face condoída da Raquel… E eu a perceber, a ler claramente em mim mesmo, eu a saber que, desta vez, as coisas não se estavam passando como das outras vezes, as outras vezes em que eu enfrentara a velhice, o ridículo da velhice para amar uma mulher…
            Deixei-me cair, desfalecido, de olhos fechados, a cabeça nas almofadas… O suor escorria-me pela cara… A Raquel, coitada, puxou do lenço e limpou-me o suor… Abri os olhos, angustiado, espiei-lhe a expressão… A rapariga tinha pena de mim!... Pena do velho!... Nenhuma troça, nenhum desdém nos seus olhos, na sua boca infantil… Piedade, piedade pelo velho senhor ofegante… Limpava-me o suor com benevolência, compaixão, uma espécie de carinho de… de…
            Hesitou,  inquieto, procurando o termo exacto, a nota justa. Eu, desnorteada, balbuciei:
            - De filha…
            O José Gomes teve um gesto de negativa terminante:
            - Não! De neta… Neta…
            Calou-se. Um frémito de emoção percorria-me toda, amolecia-me. Piedade humana, infinitamente humana, pelo mísero corpo com que Deus nos faz atraiçoar a alma.
            Ele bateu as palmas, chamou o criado. Pediu mais cerveja. Houve um silêncio longo. O criado trouxe a cerveja. O José Gomes pegou no copo e disse-me, antes de beber  primeiro gole:
            - Dias depois ofereci um jantar aos amigos, para lhes dar a notícia da minha reforma… Reformei-me definitivamente… Isto (e, num jeito discreto, indicava-me a bata de cetim azul, mais difusa entre a luz azulada) isto, agora, para mim é teatro… E uma grande, uma imensa saudade...





Nota:
Há no texto, intervalos numerados correspondentes à falta de uma ou duas palavras que a voracidade dos anos apagou no original, como não alteram o conteúdo, resolvi publicar o Conto mesmo com estas deficiências.

Fonte:   “O Jornal” – 10 de Julho de 1981.              
















                      

              

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