segunda-feira, 25 de julho de 2011

NATÁLIA CORREIA






Natália Correia

Mulher a quem não posso adjectivar, todas as palavras ditas por mim, não teriam o brilho necessário para qualificar Esta POETA, como gostava que a tratassem.

Este texto que agora publico, resulta do opróbrio, à data e sempre, da violação de um pai a uma filha de quinze anos a quem engravidou, e fez  voluntariamente um aborto.

DOIS BISPOS  - entre o martírio e a libertação

Opinião
Natália Correia

Longe e desmaiados estão os tempos em que a degenerescência ateísta do Iluminismo, decantando soturnidades no negrume da sotaina, soletrava que a religião era o ópio dos povos.

Da euforia materialista desse teocídio burguês derivou o prometeísmo do crescimento ilimitado que planificou as massas opiadas pelas técnicas alienadoras do produtivismo. É a vez dos magnatas do reino do quantitativo serem vaiados como propinadores do ópio dos povos. E chega a altura da nostalgia das virtudes do qualitativo procurar reencontrá-las  na reconstrução do espaço sacral devastado pelo quantitativo teocida.

Dos «filhos da flor» ao punk do punk  ao ovni , do  ovni à droga e da droga ao horóscopo, atarantaram-se as almas em busca de mitos, rituais e sobrenaturalidades. Eis o grande ensejo para a Igreja reunir as ovelhas tresmalhadas pela desintegração do regime unitário do sagrado com o chamamento de uma nova espiritualidade.

Nova, sublinho, em consonância com as teologias que vão emergindo desse crepúsculo da  «era constantiniana»,  que quer pôr termo à prevalência dos direitos da Igreja sobre os direitos do homem e à maior importância atribuída à ortodoxia que à verdade. Uma nova espiritualidade que, em suma, traduza o enraizamento do espírito na História e não na abstracção do dogma.


E a família?


Nestas considerações terá de deter-se quem, não se deixando opiar pelo indiferentismo injectado nas consciências  pelas forças obnubilantes  da Economocracia , esteve atento a dois discursos eclesiais que recentemente contrapuseram , em Portugal, a libertação humana fundamentada em razões divinas e a utilização destas para fins que reprimem as verdades do mundo.

O primeiro, proferido pelo arcebispo brasileiro D. Hélder Câmara, de visita ao nosso país, fala-nos da ligação que existe entre a fé e a vida, entre a história humana e um Deus libertador. Oposta a esta perspectiva de uma Igreja que dialoga com a vida e a serve, foi a voz do presidente da Conferência Episcopal D. Manuel Trindade, que nos habituara a acentos menos severos.

Cingido a um cego tradicionalismo sustentado pela deteriorada perspectiva do mundo pela Igreja, veio este bispo execrar o aborto legal de uma menina de 15 anos que, violada pelo pai, engravidara. Não esperávamos, certamente, que a Igreja quebrasse a lógica com que tem coonestado a sua condenação da interrupção voluntária da gravidez. Mas, do seu velho horror pelo incesto, manifestado na obrigatoriedade de dispensas para casamentos de parentes em graus proibidos, também não seria de aguardar a aceitação da ilicitude dessa criminosa união carnal, ainda que penalizando com a necessidade do martírio a pobre criança que sofreu a incestuosa violação.

Tais foram as palavras do bispo:  «A jovem devia ter sido ajudada a assumir a sua gravidez como uma forma de martírio.»  Saberá  Sua Ex.ª Reverendíssima que o número de meninas violadas pelos pais neste mundo é de tal monta que, a ser a mortificação santificadora do cilício que a Igreja destina às mártires da pénica brutalidade dos progenitores, não chegarão os bolandistas para darem continuação às Actas Sanctorum?     


E a família, valha-nos Deus a família? Esse pilar da forma social da religião católica consagrada na devoção rendida à Santa Família de Nazaré? Como pode a Igreja que fala pelo cerrado tradicionalismo do sr. Bispo de Aveiro conciliar o seu zelo por esse organismo nuclear de uma sociedade ordenada por costumes conformes ao governo moral da Igreja com a admissão in extremis, mas admissão, do incesto que, introduzindo na família a promiscuidade das sociedades animais, despedaça o elo espiritual que une os seus membros?

Certamente que não ignoramos que Sua Ex.ª Reverendíssima recrimina com todas as veras do seu robusto tradicionalismo a bestialidade do incesto. Mas, tendo por maior mal o aborto voluntário, mesmo quando não fazê-lo é legitimar o fruto de um crime, ao fisco rigoroso da moral eclesiástica lá foi deixando passar a monstruosidade do estupro incestuoso que vitimou a infeliz criança.

Ora, entre estes Cila e Caríbdis da sua ortodoxia, o sr. bispo de Aveiro devia ter ficado simplesmente calado, no que seguiria lúcidos silêncios de que a Igreja se sabe valer quando metida em palpos de aranha. Mas, abandonado pela inspiração da mudez, acudiu-lhe a saída da recomendação do martírio. E nisto soa a voz de D. Hélder a mostrar-nos uma outra face do cristianismo que quer acabar com o sofrimento.

Em que fica a Igreja? No costumado triunfo das vozes que, esmagando as que negam a oposição entre o céu e a terra, defendem o imobilismo do céu desfasado da terra que se vai transformando?


Espaço Sacral


Não chegam os elos sacramentais que me impuseram na infância para que me considere católica, como ouço dizer aos useiros da frase feita do «católico não praticante» . Se eu fosse realmente católica, praticava. E como não pratico sabe-me a desonestidade dizer que sou católica, só para dar razão à estatística das almas sacramentadas com a ablução baptismal.

Apenas nesta fase agónica das laicizações e secularizações dos poderes que conduziram a humanidade ao faustismo atómico da sua autodestruição, a carência do sagrado é uma problemática que não menos preocupa os que sobre ela reflectem fora dos muros dos sistemas religiosos.  E pergunta-se: terá chegado o momento da Igreja reocupar o espaço sacral que o laicismo burguês lhe roubou?

A multivocidade  dos saberes não consentiria a reposição da Verdade Absoluta sobre a qual a Igreja implantou a sua hegemonia. Depois do Vaticano II, tornou-se claro que a Igreja assim o entendia, admitindo que outras religiões tivessem acesso à Verdade. Apresenta-se, portanto, aos  cristãos eclesialmente reunidos , o grande ensejo cultural de compreenderem que, se a religião institucionalmente perdeu influência nas sociedades industriais, essa mesma decadência origina uma nostalgia de espiritualidade religante, que se ilude com toda a casta de mitos e narcóticos.

Será a Igreja capaz de responder a essa nova necessidade de fé que reclama a participação do Espírito na História? D. Hélder da Câmara quer dizer-nos que sim, ao entender que o verdadeiro cristão tem de humilhar a sua fé à realidade dos dramas que dilaceram os seres humanos e lhes tiram a dignidade. D. Manuel Trindade afasta essa esperança, ao proferir, contra a desgraçada criança que o pai violou, uma sentença ditada por uma fé orgulhosa que não se verga às necessidades do mundo.

Entretanto, eu que cada vez aprofundo mais na poesia um diálogo com o sagrado, numa amplitude pluriteísta exigida pela generosidade poética, ponho-me a reler o poema com que Frei Betto, nos porões da masmorra política, rejeitou o deus dos magistrados, dos generais, dos poderosos, dos ladrões dos pobres e dos matrimónios sem amor:

O Deus da minha fé punha o  [ homem acima da lei e o amor no lugar das velhas [tradições…



Fonte:  -  O Jornal, de 24 de Abril de 1986.   

            
  

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