sexta-feira, 24 de junho de 2011

Terceira Carta



Viareggio, junto a Pisa (Itália), 23 de Abril de 1903

        A carta que me enviou pela Páscoa, caro Senhor, trouxe-me grande alegria, pois contava várias coisas boas acerca de si, mas também porque o modo como falou da grande  e  admirável arte de  Jacobsen  mostrou que eu não estava errado ao conduzir a sua vida e as suas muitas perguntas à plenitude destes  livros.
        Irá agora entrar em Niels Lyhne,  um livro magnífico e profundo; quanto mais o lemos, mais parece que encontramos nele tudo:  do cheiro levíssimo da vida ao sabor cheio e grande  dos seus frutos  mais pesados. Não há nele nada que não tivesse sido entendido,  apreendido, vivido e reconhecido nas reverberações vibrantes da memória;  nenhuma experiência é demasiado insignificante, e mesmo o acontecimento mais miúdo cresce como o destino, e o destino ele próprio é como  um  grande  e fabuloso tecido, em que cada fio foi conduzido e entrelaçado num outro por mão infinitamente delicada, sendo sustido e reforçado por cem fios mais. Terá agora o grande privilégio de ler este livro pela primeira vez e passará pelas suas incontáveis surpresas como se caminhasse num sonho novo. Mas posso afiançar-lhe  que  mesmo mais tarde é sempre com o mesmo espanto que percorremos estes livros, que não perdem  nunca o fabuloso poder e a qualidade feérica com que se apoderam do leitor na primeira vez.
        Com eles conhecemos a fruição e a gratidão, o nosso olhar torna-se de algum modo mais apurado e simples, a nossa crença na vida ganha profundidade, e sentimo-nos maiores na vida e bem-aventurados.
        E mais tarde  terá de ler também esse esplêndido livro  sobre o destino e a nostalgia, Marie Grubbe,  e ainda as cartas de  Jacobsen  e os diários e os fragmentos e por fim os seus versos que (mesmo se em tradução medíocre ) vivem em ressonâncias infinitas. (Para isso aconselho-o, quando tiver oportunidade, a comprar a bonita edição das obras completas de Jacobsen,  que contém tudo o que mencionei. Foi publicada em Leipzig em três volumes, numa boa tradução de Eugen Diederichs,  e cada livro custa, se não estou em erro, apenas 5 ou 6 marcos.)
        A sua opinião sobre  «Aqui deviam estar rosas…»  (essa obra de incomparável forma e finura) é absolutamente correcta, ao contrário do que pretende o autor do prefácio. E aproveito desde já para lhe fazer o seguinte pedido: leia trabalhos estéticos e críticos o menos possível  -  ou correspondem a opiniões partidárias que petrificam e perdem o sentido na sua rigidez sem vida, ou não são mais do que jogos de palavras sofisticados, que hoje defendem uma coisa para amanhã defenderem o contrário. A obra de arte é uma solidão sem fim, e nada está mais longe de tocá-la do que a crítica. Só o amor poderá compreender e sustentar e fazer justiça a uma obra de arte. Em relação a estas polémicas, recensões ou prefácios, confie sempre em si próprio e na sua sensibilidade; se estiver enganado, o crescimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á lentamente e com o passar do tempo a novos conhecimentos. Deixe que os seus juízos sigam a sua própria evolução silenciosa e imperturbável que, como todos os progressos, obedece a uma profunda necessidade interior, não podendo ser imposta nem apressada. Tudo se resume a levar ao fim a gravidez e depois dar à luz. Deixar medrar cada impressão, cada semente de uma emoção, dentro de nós, no escuro, no inefável, no inconsciente, inacessível ao próprio entendimento, e com profunda humildade e paciência aguardar a hora do parto de uma nova claridade: apenas assim se vive artisticamente, no entendimento como na criação.
        Esta vida não pode ser medida no tempo, o tempo não se divide em anos, e dez anos não são nada.  Ser artista é não calcular e não contar, é amadurecer como a árvore, que não comanda a seiva e que enfrenta tranquila as tempestades da Primavera se m recear que o Verão não chegue.  O Verão chegará. Mas apenas para quem esperou pacientemente, para quem aqui permaneceu  como se à sua frente se estendesse, sem cuidados, silenciosa e imensa, a eternidade.  Todos os dias aprendo esta lição, aprendo-a pelo sofrimento que aceito com gratidão: a paciência é tudo.

RICHAR DEHMEL : A impressão que me suscitam os seus livros (e, já agora, também o homem, que conheci fugazmente) é um certo receio, o receio de que uma boa página que encontre venha a ser destruída pela seguinte e que o que nela havia de admirável se torne indigno.  Caracterizou-o muito bem  com a sua expressão:  «viver e criar no cio» . E, com efeito, a experiência artística é tão incrivelmente próxima da experiência sexual, da sua dor e prazer, que os dois fenómenos na verdade não são mais do que formas diferentes de uma mesma  nostalgia e bem-aventurança. E se, em vez de  «cio» ,  pudéssemos falar de  «sexo»,  sexo no sentido mais amplo e puro, não corrompido pelos erros da Igreja, então a arte de Dehmel seria incomparavelmente grande e importante. A sua força poética é grande e forte como um instinto primitivo, contém ritmos próprios e implacáveis, parece que irrompe de uma montanha.
Mas estou em crer que esta força nem sempre é sincera e sem pose.  (Este é afinal um dos testes mais difíceis para um criador: ter de permanecer  sempre  inconsciente  e ignorante das suas melhores virtudes se não quiser privá-las da sua inocência e virgindade!) E quando essa força, que o perpassa ruidosamente,  chega ao mundo do sexo, não encontra o que aí precisava de encontrar: uma pessoa pura.  Este mundo não amadureceu ainda, não é puro, não é suficientemente humano, é apenas masculino, é cio, ruído e desassossego,  saturado com os velhos preconceitos e com a altivez com que o homem desfigurou e sobrecarregou o amor. Porque Dehmel ama apenas como homem, e não como pessoa, há na sua percepção do sexo uma qualquer estreiteza, uma aparência selvagem , hostil, temporal, não eterna, que diminui a sua arte, que a torna ambígua e duvidosa. Esta arte não subsiste sem mácula, está marcada pelo tempo e pela paixão, e pouco nela perdurará.  (Mas é esta a sorte de quase toda a arte!) Ainda assim, podemos sempre contentar-nos com o que nela é grande, cuidando apenas de não nos perdermos, como acontece aos aficionados, neste mundo de Dehmel, tão infinitamente angustiado, tão cheio de adultério  e confusão, e tão distante dos destinos verdadeiros, que trazem mais sofrimento do que estas turbulências temporais, mas também mais oportunidades de alcançar a grandeza e de ganhar coragem para enfrentar a eternidade.
Por fim, no que respeita aos meus livros, a minha vontade seria enviar-lhe todos aqueles que de algum modo lhe pudessem trazer alegria. Mas sou um homem muito pobre e, uma vez publicados, os meus livros já não me pertencem. Nem sequer os posso comprar para os oferecer, como tantas vezes gostaria de fazer, a quem os soubesse apreciar.
Por isso, escrevo-lhe aqui num bilhete os títulos (e editoras) dos meus livros mais recentes (os últimos, no total terei publicado 12 ou 13) e deixo-lhe a si, caro Senhor, a decisão de encomendar alguns quando tiver ocasião.
Agrada-me saber que os meus livros estarão consigo.
Bem-haja!
                O seu,
                                   Rainer Maria Rilke
           

         

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