terça-feira, 14 de junho de 2011

Era assim ...


Selecções da “Gazeta do Sul” - Ano de 1955
“ O que de melhor se publicou em 25 anos”

(II volume)
                                   

Os Cavadores  do grande escritor Tomaz da Fonseca, (enviado  expressamente  para  a “Gazeta do Sul” de sua casa na Serra da Galinha em Maio de 1939).

Não sei se viram já, num planalto, a 700 metros de altitude, uma cadeia humana  - 30 ou 40 cavadores, alguns descalços, todos em mangas de camisa, cabeça ao léu, peito desnudo, batidos pela ventania que, atravessando a Estrela regelada, os trespassa e sacode entre praguedos e blasfémias.
Venho agora de lá, batendo o dente e arrepiado, como cão que viu lobo. É que senti e vi coisa pior, que foi o desespero do homem com a terra, emaranhada e presa pela cepa da urze e a raiz da carqueja, que não cede, às vezes, senão ao quarto ou quinto golpe de enxadão.
Vinte minutos de planalto e os meus sessenta e dois invernos iniciam a fuga, ao passo que eles, de pé firme e mão tente, não cessam de volver, no ar agreste, o aço luzente das alfaias, que sobem e descem, num vai-vém que impressiona pelo que tem de estranho e de trágico.
E andam ali há meses. Desde Março que a rude faina começou e prossegue, inalteravelmente, logo ao primeiro alvor da madrugada, quando nenhum dos pontos do horizonte pode afirmar ainda que o Sol há-de romper ali.
Há dias quis fixar aqueles heróis num quadro,  à moda antiga, mas não me foi possível, ou antes: não encontrei forma alguma poética que pudesse dizer o que sentia, dando ao mesmo tempo o relevo, a cor, a intensidade e a emoção que se desprendem de tais homens e em tão rude mister. Além de que nunca a forma poética me poderia dar todos os cambiantes desta luta.
E lá andam, em fila ou em pequenos núcleos, esbracejando como loucos…
Não os vejo, mas ouço de continuo o choque duro e seco dos enxadões calçados de aço.
Um deles é tão magro que faz medo. E tão tardo na fala que provoca o riso aos companheiros menos compadecidos. Mas não é tardo no arranque da urze: cada enxadada, cada torrão que rola para trás.
No extremo da fila uma criança de 13 anos. Quis devolvê-la à mãe, por me parecer trabalho extremamente rude para tão tenra idade. Suplicou-me com os olhos chorosos: precisava ganhar para comer…
Na sua aldeia, pequena e pobre, ninguém dava trabalho. Ficou e não é dos menos corajosos.
O mesmo não direi do Florêncio, que é um triste, sem pai, sem mãe e sem amigos. Teve uns tamancos, mas desfizeram-se em pedaços. A camisa é um trapo escuro. De quando em quando salta um ganipo que o vento leva. Do chapéu resta a copa, cheia de buracos e rasgões… Se este rapaz é bom, porque não teve ainda quem o quisesse para moço ? Bem sei que nesta serra há muita gente que nunca pede nem serve. Motivos? Talvez orgulho de serrano ou esse estranho culto pela liberdade, que ainda não desapareceu do coração do povo, mesmo entre o simples e bronco da montanha.
Entre todos, porém, o que mais me espantou, quando veio pedir que o incorporasse na fileira, foi o Manco, assim dominado por lhe faltar a perna esquerda, quase desde a bacia: meio palmo de fémur, quando muito.
- E garanto-lhe que não ficarei atrás.
E não ficou.
Quando a raiz lhe prende o enxadão, roga uma praga… e a carqueja salta, num relâmpago.
Há dias o suão fustigou a serra com tal violência que até as pedras rebolavam, encosta além. Pois nunca despegou. Se uma lufada mais violenta ameaçava derrubá-lo, rodava sobre o calcanhar, e com tal ligeireza que não perdia uma pancada.
Não sei se compreendem e avaliam este milagre de equilíbrio. A princípio não podia crer que um mutilado assim pudesse sequer equilibrar-se, quanto mais roçar mato, cavar, arrancar pedras, rachar lenha… E foi preciso ver. Mas hoje creio e conto ao mundo…
Falei-lhe numa perna de pau…
- Era bom, mas custa 500$00, que não tenho.
- Porque não vai pedir de terra em terra…
- Prefiro trabalhar…
Prefere trabalhar, o desgraçado a quem nenhuma instituição de caridade ou assistência viu ainda!
Ontem passei por eles, quando jantavam ao pé da fonte. Os melhor fornecidos comiam juntos, tagarelando sempre. A sopa é o forte. Cada um tem a sua panela, onde deitam a couve ou o feijão, com umas orelhas de bacalhau, e alguns, poucos, uma pequena lasca de toucinho. Os que, porém não tinham nem sopa nem toucinho, nem mesmo o bacalhau, retiravam, sob protexto de um assento melhor sobre a carqueja verde, para esconderem a pobreza, que só lhe permitia a sardinha e o naco de broa. Sardinha e broa todo o dia! E que sardinha, e que broa!...
O vento amainou um pouco, mas o frio persiste. Por quê, estando em Maio e numa zona temperada? É que a Estrela branqueja e, quando a varre aquele vento de Espanha, não há manta nem choupana que nos defenda e abrigue desse sopro infernal… Além de que pairamos a 700 metros de altitude, sem lar… Eu fujo, visto poder fazê-lo. Mas eles?
E descendo as ladeiras, não me sai do sentido a voz desse latino que, em Roma, disse um dia aludindo a outros, igualmente famintos e esquecidos: “Quid futurum est, si nec dii nec homines hujus coloniae  miserantur”? *

Ano XIII – nº 641
* Tradução livre do latim – O que vai acontecer, se acontece que nem os deuses das colónias da piedade, destes homens se lembram. 

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