segunda-feira, 6 de junho de 2011

Falando de GÉNIOS ...




Ingmar Bergman
O homem que fazia perguntas difíceis
WOODY ALLEN escreve sobre Ingmar Bergman, o “melhor realizador” da sua vida. Neste texto, fala das longas conversas telefónicas entre os dois, do “contador de histórias nato” que via filmes todos os dias, do génio que não o influenciou: “Eu não sou um génio e o génio não pode ser aprendido nem a sua magia pode ser transmitida de uma pessoa para outra”. Woody Allen.

Estava a filmar em Oviedo, uma linda cidadezinha no Norte de Espanha, quando me deram a notícia da morte de Bergman.
Soube através de um amigo comum, que me telefonou para o local das filmagens.  Bergman disse-me uma vez que não queria morrer num dia de sol. Como não estava lá, só posso esperar que ele tenha tido a luz difusa que todos os realizadores desejam.
Já o disse muitas vezes a pessoas que têm uma visão romântica dos artistas e que vêem a criação como algo sagrado: no fim, a arte não nos salva. Por muito sublimes que sejam os trabalhos que produzimos  (e Bergman deu-nos uma extraordinária colecção de obras primas), eles não nos protegem da pancada fatal na porta que interrompeu o cavaleiro e os seus amigos no final de “O Sétimo Selo”.  E assim naquele dia de Julho, Bergman, o grande poeta cinematográfico da mortalidade, não pôde adiar o seu inevitável xeque-mate e o melhor realizador da vida desapareceu.
Costumo fazer piada acerca de a arte ser o catolicismo dos intelectuais, uma empenhada crença na vida além da morte. O que eu costumo dizer é que há ainda uma coisa melhor que viver no coração e na mente do público, que é viver no nosso apartamento. É claro que os filmes de Bergman vão continuar a existir e a ser vistos em museus e na televisão e a ser vendidos em DVD, mas, conhecendo-o como eu o conheci, sei que isso é uma fraca compensação e tenho a certeza de que ele ficaria encantado se pudesse trocar cada um dos seus filmes por um ano a mais de vida. Isso dar-lhe-ia cerca de sessenta aniversários suplementares e a possibilidade de continuar a fazer mais filmes – uma produção notável. E não tenho a mínima dúvida de que seria assim que ele usaria o tempo suplementar, a fazer a coisa que ele amava acima de tudo, rodar filmes.
Bergman tinha prazer com todo o processo e não se preocupava muito com as reacções aos seus filmes. Agradava-lhe quando era apreciado mas, segundo me disse uma vez, “quando não gostam de um filme que eu faço, fico incomodado durante cerca de 30 segundos”.
Não se interessava pelos resultados comerciais dos filmes, apesar de os produtores e as distribuidoras lhe telefonarem sempre a dar-lhe os números do fim-de-semana de estreia, que lhe entravam por um ouvido e saíam pelo outro.
Costumava dizer:  “A meio da semana, os seus extravagantes e optimistas prognósticos estarão reduzidos a nada.”
Apreciava os aplausos da crítica mas não precisava dela e, apesar de querer que os espectadores gostassem do seu trabalho, nem sempre lhes tornava essa tarefa fácil. Mas os filmes que exigiam algum trabalho aos espectadores valiam bem o esforço. Por exemplo, quando se percebe que as duas mulheres de “O Silêncio” são apenas dois aspectos contraditórios da mesma mulher, o até aí enigmático filme abre-se como magia. Claro se o espectador tiver mergulhado em filosofia dinamarquesa antes de ver “O Sétimo Selo” ou “O Mágico” isso ajuda imenso, mas os talentos de contador de histórias de Bergman eram tão extraordinários que conseguia manter uma audiência paralisada e encantada mesmo com material de alguma dificuldade. Ouvi pessoas saírem de alguns dos seus filmes a dizer coisas como:  “Não sei se percebi bem, mas fiquei agarrado à cadeira do princípio ao fim.”

A PAIXÃO PELA TEATRALIDADE

A grande paixão de Bergman era a teatralidade, e ele era também um excelente encenador de teatro, mas o seu trabalho como realizador não se alimentava apenas de teatro: vivia da pintura, da música, de literatura e filosofia.
O seu trabalho sondava as maiores questões da humanidade e os seus poemas de celulóide eram frequentemente profundos. Mortalidade, amor, arte, o silêncio de Deus, a dificuldade das relações humanas a agonia da dúvida religiosa, o fracasso do casamento, a dificuldade de comunicação entre as pessoas.
E este homem era, ao mesmo tempo, afável, divertido, com sentido de humor, inseguro acerca dos seus imensos dotes, manipulado pelas mulheres.
Conhecê-lo não significava entrar de repente no templo criativo de um formidável e intimidante génio negro em incubação permanente , que entoava sentenças profundas com sotaque sueco sobre o horrível  destino do homem num universo sem esperança.
Era do género “Woody, tive este sonho idiota onde eu apareço no “set” para fazer um filme mas não consigo decidir-me sobre o sítio onde devo pôr a câmara. A questão é que eu sei que sou bastante bom nisso e já o faço há muitos anos.Também costumas ter estes sonhos ansiosos?” ou “Achas que era interessante fazer um filme onde a câmara nunca se mexesse um milímetro e fossem os actores a entrar e a sair do enquadramento? Ou achas que as pessoas só iriam rir de mim?”.
O que é que se diz quando se fala ao telefone com um génio? Não achava que fosse boa ideia, mas nas suas mãos acho que poderia ser uma coisa especial. O vocabulário que ele inventou para sondar as profundezas psicológicas dos actores também teria parecido disparatado para aqueles que aprenderam cinema da maneira ortodoxa. Na escola do cinema (fui rapidamente expulso da Universidade de Nova Iorque quando estava a estudar cinema nos anos 50), a ênfase era sempre no movimento. Os professores estavam sempre a dizer aos estudantes que o cinema era imagem em movimento e que a câmara tinha de estar em movimento e tinham razão. Mas Bergman fixava a câmara na cara de Liv Ullman ou na de Bibi Andersson e deixava-a aí sem a mover e o tempo passava e passava e uma coisa estranha e maravilhosa e única acontecia.
O espectador sentia-se atraído para dentro do personagem e isso não era aborrecido mas emocionante.

O GÉNIO

Apesar das suas manias e das suas obsessões religiosas e filosóficas, Bergman era um contador de histórias nato que não conseguia deixar de ser interessante mesmo quando tudo o que o interessava na sua cabeça era dramatizar as ideias de Nietzsche ou de Kierkegaard.
Eu costumava ter longas conversas telefónicas com ele. Costumava a ser ele a organizá-las a partir da ilha onde vivia. Eu nunca aceitei os seus convites para o visitar porque a viagem de avião me incomodava e não me fascinava a ideia de fazer uma viagem num avião pequenino até um rochedo no mar ao pé da Rússia para aquilo que eu imaginava como um almoço de iogurte. Discutíamos filmes e é claro que eu o deixava fazer a despesa da conversa porque me sentia privilegiado por ouvir os seus pensamentos e as suas ideias. Ele via filmes todos os dias e nunca se cansava de os ver. Todos os tipos de filmes, mudos e sonoros. Antes de se deitar, às vezes, via um filme daqueles que não o obrigavam a pensar e que podiam aliviar a sua ansiedade, por vezes um filme de James Bond.
Como todos os grandes estilistas, como Fellini, Antonioni e Buñuel, por exemplo, Bergman tem tido os seus críticos. Mas apesar de um ou outro desvio, todos os filmes destes artistas tiveram um eco imenso em milhões de pessoas em todo o mundo. E as pessoas que mais sabem de cinema, os que o fazem – realizadores, argumentistas, actores, cinematografistas, editores -, têm o trabalho de Bergman em altíssima conta.
Como eu o elogiei tão entusiasticamente durante décadas, quando Bergman morreu muitos jornais e revistas telefonaram-me a pedir comentários e entrevistas. Como se eu tivesse alguma coisa de valor a acrescentar às notícias, para além de mais de uma vez sublinhar a sua grandeza.
Perguntaram-me como é que ele me tinha influenciado. Eu respondi que ele não me tinha influenciado porque ele era um génio e eu não sou um génio e o génio não pode ser aprendido nem a sua magia pode ser transmitida de uma pessoa para outra.
Quando Bergman invadiu a cena artística de Nova Iorque como um grande realizador eu era um jovem autor de comédias e um cómico de “nightclubs”. Será que o trabalho de uma pessoa pode ser influenciado por Groucho Marx e Ingmar Bergman?
Mas há uma coisa que eu consegui absorver dele, uma coisa que não depende do génio nem sequer do talento e que pode de facto ser aprendida e desenvolvida. Estou a falar daquilo a que muitas vezes se chama “ética do trabalho” mas que não passa, na realidade, de mera disciplina. Aprendi com o seu exemplo a dar sempre o meu melhor em cada momento, sem nunca me deixar impressionar pela fútil visão do mundo como uma série de êxitos fracassos, sem sucumbir à tentação de representar o papel glamoroso do realizador habituando-me, em vez disso, a fazer um filme e a passar ao seguinte.
Bergman fez cerca de 60 filmes ao longo da vida. Eu fiz 38. Se não posso atingir a sua qualidade, pelo menos posso tentar aproximar-me da sua quantidade.


*The New YorkTimesSyndicate
Artigo traduzido e publicado no Ípsilon de 7 Setembro 2007.
      


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