quinta-feira, 23 de junho de 2011

Segunda Carta



         

 
Viareggio, junto a Pisa (Itália), 5 de Abril de 1903

Terá de perdoar-me, caro Senhor, se só hoje gratamente respondo à sua carta de 24 de Fevereiro: tenho andado indisposto o tempo todo, não propriamente doente, mas oprimido por um cansaço semelhante à gripe, que me deixou incapaz para tudo. E por fim, como a situação não queria mudar, viajei até esta costa meridional cujos efeitos benéficos já em tempos me ajudaram. Mas não me sinto ainda bem, custa-me escrever, e por isso peço-lhe que receba estas poucas linhas como se fossem muitas mais.
        Saberá certamente que as suas cartas me trarão sempre grande alegria, e peço-lhe apenas que seja indulgente com as minhas respostas, que muitas vezes talvez o deixem de mãos vazias; pois no fundo, e sobretudo nas coisa mais profundas e importantes, estamos indizivelmente sós, e para que um homem possa aconselhar ou sequer ajudar um outro, muitas coisas têm de acontecer e ser levadas a bom porto, uma constelação inteira terá de favorecer esta intenção.
        Queria hoje dizer-lhe apenas duas coisas: Ironia:
        Não se deixe dominar por ela, sobretudo nos momentos em que não está a criar. Nos momentos de criação, tente servir-se dela como um meio entre outros para apreender a vida. Quando usada puramente, também a ironia é pura, e não há que ter vergonha dela; se a sentir demasiado familiar, receie esta crescente confiança e dedique-se antes a tópicos grandes e sérios, diante dos quais ela será pequena e indefesa. Procure a profundidade das coisas: a ironia nunca desce até lá, e quando tiver tocado a fímbria do grande, investigue também se este modo de compreensão corresponde a uma necessidade do seu ser. Pois, sob a influência de coisas sérias, a ironia ou cairá por si (caso seja acidental) ou fortalecerr-se-á (na medida em que seja uma pertença inata) até se tornar uma ferramenta séria e passar a fazer parte da série de meios que irão constituir a sua arte.
        E a segunda coisa que tenho hoje para lhe dizer é a seguinte:
        Entre todos os livros que tenho, só uns poucos são para mim indispensáveis, e dois deles acompanham-me sempre para onde vou: Mesmo agora estão aqui ao meu lado: a Bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês  Jens Peter Jacobsen. Ocorre-me perguntar se conhece as suas obras. Pode facilmente encontrá-las, porque algumas foram publicadas na Biblioteca Universal da Reclam em traduções bastante boas. Compre o voluminho Seis Novelas de J.P. Jacobsen e também o romance  Niels Lybne, e comece por ler a primeira novela do primeiro livro, intitulada  «Mogens». Diante de si abrir-se-á um mundo, a felicidade, a riqueza, a incompreensível grandeza de um mundo. Viva dentro destes livros por algum tempo, aprenda com eles o que lhe parecer digno de ser aprendido, mas acima de tudo ame-os. Este amor será mil vezes retribuído e, o que quer que a vida lhe reserve, estou certo de que este amor fará parte do tecido do seu ser como um dos fios mais importantes por entre os muitos fios das suas experiências, desilusões e alegrias.
         Se tiver de dizer com quem aprendi o que é a criação, a profundidade e eternidade da criação, posso indicar dois nomes apenas: o nome do grande poeta Jacobsen,  e o nome de Auguste Rodin, o escultor que não tem par entre os artistas que hoje vivem.
       

E muita sorte no seu caminho!
                                                               O seu,
Rainer Maria Rilke
                                                                                                           

  



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