quarta-feira, 29 de junho de 2011

Quinta Carta




Roma, 29 de Outubro de 1903

        Caro e muito prezado Senhor,
       
        Recebi a sua carta de 29 de Agosto em Florença e só agora, dois meses volvidos, lhe respondo. Perdoe este meu desleixo, mas gosto pouco de escrever cartas quando estou em viagem, porque para isso não preciso apenas do material indispensável, mas também de algum silêncio e solidão e de uma hora que não me seja demasiado estranha.
        Chegámos a Roma há cerca de seis semanas, numa altura em que encontrámos ainda uma Roma vazia, quente, ameaçada de febres,  e esta circunstância, aliada a outras dificuldades práticas de alojamento, contribuiu para o desassossego à nossa volta que não queria amainar e também para aquele pesado sentimento de exílio que nos acomete em terras estrangeiras. Acrescente-se ainda que, para quem não a conhece, Roma tem nos primeiros dias um efeito esmagador e triste, com a sua atmosfera de museu, sem vida e baça, com a profusão de passados escavados e a custo mantidos (de que se alimenta um magro presente), com a indescritível  sobrevalorização, incitada por eruditos e filólogos e imitada por esses animais de hábitos que são os turistas em  Itália, de todas essas coisas desfiguradas e apodrecidas, que no fundo não são mais do que restos acidentais de um outro tempo e de uma outra vida que não é nem deve ser a nossa. Por fim, ao cabo de semanas de uma aversão quotidiana, voltamos a nós e, mesmo que um pouco atordoados, dizemos: não, não há aqui mais beleza do que noutras partes, e todos estes objectos, que gerações sucessivas admiraram e que as mãos de ajudantes tornaram melhores e mais completos, não querem dizer nada, não são nada e não têm coração nem valor nenhum – mas há aqui muita beleza, porque há muita beleza em todo o lado. Cursos de água cheios de vida seguem pelos velhos aquedutos até desembocarem na grande cidade, onde dançam nas muitas praças em conchas de pedra branca e se espraiam em tanques largos e espaçosos, rumorejando durante o dia com um sussurro que sobe à altura da noite, que aqui é grande, cheia de estrelas e com brisas suaves. E há também jardins, áleas inesquecíveis e escadarias, escadarias que Miguel Ângelo projectou, escadarias construídas à imagem de água que caí, uma larga queda de água, com um degrau nascendo de outro degrau, como a onda nasce da onda. Com estas impressões restabelecemo-nos, furtamo-nos à multiplicidade que tenta acorrentar a nossa atenção com a sua conversa e tagarelice (e como palreia!) e lentamente aprendemos a reconhecer as poucas coisas onde o eterno se demora e cuja solidão podemos partilhar em silêncio e amar.
        De momento vivo ainda na cidade, no Capitólio, não muito longe da mais bela estátua equestre que nos chegou da arte romana: a estátua de Marco Aurélio; mas dentro de poucas semanas vou mudar-me para um espaço silencioso e simples, um velho terraço perdido no lugar mais recôndito de um grande parque, escondido da cidade, do seu barulho e acasos. Vou aí ficar todo o Inverno, alegrando-me com o grande silêncio e esperando que ele me ofereça horas boas e valorosas…
        Quando lá estiver e me sentir mais em casa, hei-de escrever-lhe uma carta mais longa onde falarei também do que me escreveu. Hoje tenho ainda apenas a dizer-lhe (e se calhar fiz mal em não o ter avisado mais cedo) que o livro que menciona na sua carta (e que contém trabalhos seus) não me chegou às mãos. Talvez tenha voltado para si a partir de Worpswede ? (É que enviar encomendas para o estrangeiro não é boa ideia.) Esta é a possibilidade mais favorável e espero que ma confirme. Com sorte não se terá perdido, o que infelizmente não é excepção nos correios italianos.
        Terei muito gosto em receber este livro (como aliás tudo o que seja um sinal seu), e hei-de ler e reler e viver tão bem e tão sinceramente quanto possa todos os versos que entretanto surjam (caso mos confie).
        Com os melhores desejos e cumprimentos.

O seu,
Rainer Maria Rilke                                             
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   




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