terça-feira, 28 de junho de 2011

Quarta Carta




Worpswede, junto a Bremen (morada temporária),
16 de Julho de 1903

        Deixei Paris acerca de dez dias, em sofrimento e cansado, e viajei até esta grande planície nórdica cuja vastidão e silêncio e céu, assim espero, me devolverão a saúde. Mas viajei chuva adentro, uma chuva demorada que só hoje deixa escapar alguma luz sobre a terra assolada por ventos inquietos; e aproveito este primeiro momento de claridade para o saudar, caro Senhor.
        Caro Senhor Kappus: deixei uma carta sua muito tempo por responder. Não que me tenha esquecido dela  - pelo contrário, era daquelas cartas que voltamos sempre a ler quando as encontramos por entre a correspondência, e nela reconheci-o a si, como se o visse de muito perto. Refiro-me à sua carta de 2 de Maio, sem dúvida que se lembra dela. Quando a leio, como agora, no grande silêncio destas terras longínquas, a sua bonita inquietação com a vida comove-me mais ainda do que quando estava em Paris, onde tudo soa e ecoa de maneira diferente por causa do imenso ruído que faz estremecer as coisas. Aqui, com uma terra violenta à minha volta por onde passam os ventos vindos dos mares, aqui sinto que essas perguntas e emoções, que vivem uma vida própria na sua profundeza, não podem ser respondidas por ninguém; pois mesmo os melhores falham nas palavras quando querem designar o que é quase inaudível e quase indizível. Julgo, no entanto, que v. poderá encontrar uma solução se procurar amparo em coisas semelhantes àquelas que agora ajudam à convalescença dos meus olhos. Se procurar amparo na Natureza, no que é nela tão simples e pequeno que quase não se vê mas que inesperadamente pode tornar-se grande e incomensurável;  se alimentar esse amor pelo mais ínfimo  e se tentar, humilde como um criado, ganhar a confiança do que parece pobre, tudo será para si mais fácil, mais coeso e de algum modo mais conciliador, talvez não no intelecto, que recua atónito, mas no mais íntimo da sua consciência, do seu conhecimento e atenção. V. é tão jovem ainda, está diante de todos os inícios, e por isso gostaria de lhe pedir, caro Senhor, que tenha paciência quanto a tudo o que está ainda por resolver no seu coração e que tente amar as próprias perguntas como se fossem salas fechadas ou livros escritos numa língua muito diferente das que conhecemos. Não procure agora respostas que não lhe podem ser dadas porque ainda não as pode viver. E tudo tem de ser vivido. Viva agora as perguntas. Aos poucos, sem o notar, talvez dê por si um dia, num futuro distante, a viver dentro da resposta. Talvez traga em si a possibilidade  de criar e de dar forma  e talvez venha a senti-la como uma forma de vida particularmente pura e bem-aventurada; é esse o rumo que deverá tomar a sua educação; mas aceite o que está por vir com grande confiança, e se ele surgir apenas da sua vontade, de uma qualquer necessidade interior, deixe-o entrar dentro de si e não odeie nada. O sexo é difícil, bem sei. Mas nós fomos incumbidos do difícil, quase tudo o que é sério é também difícil, e tudo é sério. Se reconhecer esta verdade, e se conseguir criar, a partir de si, da sua predisposição e singularidade, da sua experiência e infância e força, uma relação própria com o sexo  (não influenciada por convenções ou costumes), então já não precisará de ter medo de se perder e de não ser digno do que tem de mais precioso.
        A volúpia do corpo é uma experiência em nada diferente da visão pura ou da sensação pura com que um fruto bonito enche a língua; é uma experiência grande e infinita que nos é concedida, um modo de conhecimento do mundo, é a plenitude e o fulgor de todo o conhecimento. E que esta experiência nos seja concedida não é mau; mau é que quase todos os homens abusem  dela e desperdicem  e a vejam como um estímulo em alturas de cansaço e como uma distracção, em vez de perceberem  que é antes uma colecção de pontos culminantes. Aliás, os homens mudam também o acto de comer: a carência , por um lado, e o excesso, por outro,  turvaram a clareza desta necessidade, como turvas se tornaram todas as necessidades simples e profundas em que a vida se renova. Mas o indivíduo pode vê-las e vivê-las com clareza (e se não o indivíduo, que é demasiado dependente, então o solitário). Pode lembrar-se de que toda a beleza dos animais e das plantas é uma forma tranquila e perene de amor e nostalgia, e pode ver os animais como vê as plantas, que se unem e multiplicam e crescem, com paciência e boa vontade, não por prazer ou dor física, mas obedecendo a necessidades maiores do que o prazer ou a dor e mais poderosas do que a vontade ou a resistência. Ah, se o homem soubesse aceitar mais humildemente, se soubesse carregar, suportar, sentir mais seriamente este segredo que enche o mundo até às mais pequenas coisas, se soubesse como ele é terrivelmente árduo em vez de o julgar simples. Se fosse mais temente da sua própria fecundidade, que é uma apenas, quer se manifeste no corpo ou no espírito; porque a criação do espírito tem também origem na criação física, é idêntica a ela, é apenas uma repetição mais silenciosa, arrebatada e eterna da volúpia do corpo. « A ideia de ser criador, de gerar, de dar forma » não é nada se não for  continuamente confirmada e concretizada no mundo, não é nada sem o acordo mil vezes asseverado das coisas e dos animais, e a sua fruição é tão indescritivelmente bela e rica porque está cheia de lembranças herdadas da geração e do parto de milhões de criaturas. Numa ideia criadora vivem mil noites esquecidas de amor que lhe dão grandeza e elevação. E aqueles que à noite se unem e entrelaçam numa volúpia que os embala trabalham seriamente e recolhem doçuras, profundidade e força para o canto de um qualquer poeta futuro que se levantará para dizer os êxtases que não podem ser ditos. E chamam o futuro; e mesmo quando erram e se agarram cegamente, o futuro chega ainda assim, ergue-se uma nova pessoa, e sobre o fundamento do acaso, que aqui parece consumar-se, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente de encontro ao óvulo aberto que o chama a si. Não se deixe enganar pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei. E só perdem o segredo aqueles que o vivem mal e falsamente ( e são muitos ), mas transmitem-no a outros como uma carta fechada, sem o saberem. E não se deixe enganar pela multiplicidade dos nomes e pela complexidade dos casos. Talvez exista, por cima de tudo, uma grande maternidade como nostalgia comum. A beleza da virgem, de um ser que (como v. tão bem disse) « ainda não deu provas », é maternidade que se adivinha e prepara, que tem medo e anseia. E a beleza da mãe é maternidade que serve, e na mulher de cabelos brancos é uma grande lembrança. E a maternidade está também no homem, parece-me, no seu corpo e no seu espírito, pois o que ele concebe é também uma espécie de parto, e dar à luz é criar a partir da plenitude interior. E os dois sexos talvez sejam mais próximos do que se julga, e a grande renovação do mundo consumar-se-á talvez quando o homem e a rapariga, libertos de todos os desprazeres e falsas emoções, se procurarem, não como opostos, mas como irmãos e vizinhos, e se unirem como pessoas para partilharem, com ânimo simples, sério e paciente, o peso da sexualidade que lhes foi imposta.
        Mas tudo o que um dia talvez venha a ser possível para muitos pode ser já preparado pelo solitário e construído com as suas próprias mãos, que erram menos. Por isso. Caro Senhor, deverá amar a sua solidão e carregar o sofrimento que a acompanha com lamentos melodiosos. Pois aqueles que lhe são próximos estão distantes, como me diz, e isso mostra que a sua solidão começa a estender-se. E se o próximo parece distante é porque a sua solidão toca já nas estrelas e é desmedida. Alegre-se com o seu crescimento, que não poderá ser assistido por ninguém, e seja benevolente para com aqueles que ficam para trás, e mostre-se firme e tranquilo diante deles e não os atormente com as suas dúvidas e não os assuste com a sua esperança ou com a sua alegria, que eles não podem compreender. Tente estabelecer com eles uma qualquer comunhão simples e leal, que não será forçosamente de mudar quando v. mudar;  ame a vida que neles se manifesta com uma forma diferente e estime aqueles que começam a envelhecer e que temem a solidão em que v. confia. Evite alimentar o drama que acicata sempre a relação entre pais e filhos, que esgota muita da força dos filhos e consome o amor dos pais, que age e dá calor mesmo quando não entende. Não lhes peça conselhos e não conte com a sua compreensão; mas acredite que um amor lhe está reservado, como uma herança, e confie na força e na bênção deste amor, que nunca terá de abandonar para conseguir chegar longe!
        É bom que tenha arranjado uma profissão que assegura a sua independência e que o deixa entregue a si mesmo em todos os sentidos. Espere pacientememte para ver se ela terá o efeito de tolher a sua vida interior. Parece-me uma profissão bastante difícil e exigente, porque se verga ao peso de grandes convenções e porque quase não deixa espaço para uma concepção pessoal das suas tarefas. Mas mesmo em circunstâncias pouco familiares, encontrará sempre na solidão uma casa e um abrigo, e verá que é dela que partem todos os caminhos. Os meus melhores desejos acompanham-no e a minha confiança está consigo.
                                                                                   O seu,
Rainer Maria Rilke     
  
               



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