domingo, 8 de maio de 2011

Era Assim

Selecções da “Gazeta do Sul” - Ano de 1955
“ O que de melhor se publicou em 25 anos”

(I volume)
Os TIPÓGRAFOS

de Ferreira de Castro
escritor mundialmente consagrado e jornalista de valor.

São os tipógrafos os detentores de todas as chaves do Alfabeto, são eles que detêm o segredo do princípio e do fim, segredo que remonta ao mundo lendário e que está condensado no Alfa e no Ómega.
E as suas mãos são como casulos, onde todas as ideias se transforma nessas libélulas inquietas que são as folhas de papel impresso, e que vão, através do Mundo, contagiando cérebros e recrutando almas.
E a sua cabeça é um grande arquivo dos vocábulos, decerto menos ordenado do que um dicionário, mas mais vasto do que este, porque nela baila mais do que um idioma e porque ela não é como o dicionário, insensível à música das palavras.
E os seus olhos são como essas  grades que se usavam  nas decifrações dos hieroglifos; são olhos de paleógrafo, que decifram todos os caracteres caligráficos, desde a letra preciosa das poetisas, à emaranhada dos que escrevem muito, dos sábios e dos literatos, de todos que, absorvidos pelo pensamento, se alheiam das evoluções da pena através da estepe do papel em branco.
E os seus ouvidos são como antenas que interceptam, quase instintivamente, o ritmo dos vocábulos,  a plástica da prosa e por isso, quando surge um inovador, que altera a música dos períodos, as provas vêm  povoadas de “gralhas” e só depois do tipógrafo haver constatado que se trata verdadeiramente de um inovador, ele deixa de colocar as vírgulas convencionais e segue a nova melodia.
E o seu espírito, sob o perene contacto  com o pensamento dos que escrevem, enche-se de fulgor literário, mobila-se com todos os troféus da cultura  e é como esses rios onde se lavam as areias auríferas e em cujo fundo ficam sempre resíduos preciosos.
E assim, muitas vezes, são mais ricos de sapiência do que muitos dos que escrevem e então notam modestamente, sem desejos de se salientar, os erros dos originais que seus olhos vão seguindo ou disparam sobre o escritor incipiente as  flexas*  da ironia, porque sentem que o Alfabeto é afrontado por mediocridades mascaradas com os mantos raptados ao verdadeiro  Valor – e eles, volvidos para o culto dos vocábulos, não podem chancelar sem desdém aquele ultraje.
Outras vezes, sob a magia dessas folhas de papel escrito que encerram mundos ignorados de beleza e que eles decifram pacientemente, como se descobrissem o segredo de um tesouro remoto, sua sensibilidade enche-se de vibração, sua alma acorda para um novo rito – e demandam essas mesas anónimas sobre as quais  aos célebres privilegiados é grato debruçarem-se, em meditação; essas mesas que são o cadafalso da vida prosaica, mas que são também o altar da vida espiritual, o altar da Literatura.
E surgem como poetas notáveis, como prosadores gloriosos, como jornalistas célebres, duplamente intelectualizados, porque antes da sua pena traçar os signos do Alfabeto, suas mãos o acariciaram e por ele foram osculadas.
E são muitos, formam legião, os intelectuais que, nimbados por autêntico valor, têm saído para a Celebridade, desde essas tipografias onde se fecunda a glória de tantos medíocres. Porque os tipógrafos são, afinal, os verdadeiros fecundadores da glória, são eles que mantêm, como uma lâmpada eterna, e que espalham, como um cortejo de estrelas, o nome dos literatos e dos sábios, e que fazem esse nome ecoar em todo o Mundo, ser escutado por todos os ouvidos, ser lido por todos os olhos. São eles,  com o seu trabalho anónimo, os verdadeiros propulsores da Celebridade e da Glória, que eram difíceis e raras quando as suas mãos ainda não percorriam esses favos de chumbo  que são as caixas de tipo.
E os seus frágeis braços são alavancas da Civilização, pois é devido a eles, que fazem difundir e ser compreendidas, seguidas,  ampliadas e aperfeiçoadas as teorias científicas, as invenções  audaciosas, as descobertas surpreendentes, que os séculos que precederam a Gutenberg  valem mais para a humanidade do que todas as dezenas  de séculos que a Gutenberg antecederam .
E basta pensar no que seria o mundo contemporâneo se os sábios e os escritores não pudessem difundir as suas investigações e as suas criações mais além dos manuscritos, para se compreender a acção dos tipógrafos adentro do Progresso – para se compreender o seu papel na epopeia do trabalho.
E os novos surtos do Progresso são por eles sempre seguidos e assim as suas mãos vão perdendo esse gesto de ave que pica uma romã negra, para se tornarem mais lestas, mais modernas, ao teclar as grandes “linotypes”, as complicadas máquinas que vêm substituir o braço, no culto do Alfabeto.
E trabalham, trabalham na penumbra das oficinas e ali são como sacerdotes do Génio Humano – até que a tuberculose, que é o nume da fatalidade da nobre profissão, lhes torne cor de marfim a parte das mãos que os tipos não enegreceram.

*de acordo com o texto original
                                                             “Gazeta do Sul” nº 104 – Ano III (1932)    

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