segunda-feira, 23 de maio de 2011

Crónica


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Dar ao pagode aquilo de que o pagode gosta?

     Talvez a imagem que eu tenho de Demóstenes seja um tanto equivocada. Há reminiscências que nos ficam da juventude, de leituras avulsas e nem sempre bem informadas, e que vêm a soçobrar, com o travo da desilusão, uma vez confrontadas com um apuramento mais adulto e menos entusiástico dos factos.   
     O que não falta na história são figuras mitificadas. Algumas respeitáveis, outras nem por isso. Creio que tenho direito a  preservar os meus mitos e as minhas fantasias enquanto um qualquer obra túrgida, desmancha-prazeres e desenganadora não me vier, em má hora, parar à cabeceira. 

     Vejo-o sempre, com uma firmeza e uma força de vontade sobre-humanas, a vencer a gaguez, levantando a voz contra  as ondas;  a forçar-se ao recolhimento e ao estudo numa caverna, após ter cortado a barba apenas numa das faces; a recusar, com repugnância e nobre gesto, o ouro de Filipe que corrompeu os seus conterrâneos. E depois, aquela vida toda dedicada a uma causa que considerava nobre e justa, o somatório das desilusões, o triunfo dos seus inimigos, a ingratidão dos concidadãos, a amargura, o suicídio…
     Deixou – dizem – as peças oratórias mais notáveis de toda a Antiguidade, mas os seus objectivos não foram atingidos. Feitas as contas, foi um falhado, um perdedor. Aos taradinhos da “filosofia do sucesso” não convém como herói.
     Um dia – conta uma história que li não sei onde  - Demóstenes discursava  num anfiteatro cheio de gente. O tema era o habitual: a defesa da Grécia contra Filipe da Macedónia. A assistência ria, bichanava, comia, e, de uma forma geral, portava-se alarvemente. Em dado momento, Demóstenes, começou a contar o seguinte: Certo homem precisava de um burro para uma viagem. Um recoveiro, que ia para os mesmos lados, tinha um burro disponível e alugou-lho. Foram andando, andando e, a certa altura, pararam para descansar. O sol era forte, a paisagem de pedras, de maneira que o alugador do burro, sentou-se, aproveitando a sombra do animal. O outro bradou, indignado: “Alto lá! Eu aluguei-te o burro;  não te aluguei a sombra do burro!” Nesta altura da história, todos estavam caladas na assembleia, à espera do desenlace. Demóstenes deve ter feito um trejeito de desprezo e ralhou mais ou menos assim: “Então vocês não têm vergonha? Quando eu lhes falo na defesa da Pátria, estão-se nas tintas. Mal começo a contar uma historieta idiota, voltam-se todos para mim! Pois não lhe hão-de saber a continuação!” Até hoje, e já lá vão dois mil e tal anos…
     Se Demóstenes tivesse aplicado todas as suas capacidades a contar anedotas na ágora, seria provavelmente uma figura muito popular. Talvez chegasse mesmo a ser mencionado por algum dos escritores da época. Correr-lhe-ia a vida fácil e receberia muitos convites. É pouco provável que morresse proscrito, desiludido e amargurado. Não teria, porventura, escrito as “Filípicas”, mas de acordo com os padrões de sucesso hoje em vigor, vagamente inspirados nas profundezas ideológicas de um Dale Carnegie, era capaz de ser considerado um vencedor.
     Ocorrem-me estas coisas, a propósitos de uns ditos e de uns comportamentos que há por aí e se querem muito lisonjeadores dos gostos públicos e das vontades do público. Começo a estar farto disto e incomoda-me ver que ninguém reage contra o arraial de demagogia que se instalou, que se sente bem, e parece não ter tenção de se ir embora. Anda toda a gente a querer contar e a querer ouvir a história do burro…
     Em se tratando de política, mesmo que haja toda a paciência para tolerar os expedientes consabidos da arte da dissimulação, nos termos resignados com que o Código Civil tolera os artifícios dos comerciantes, sobra sempre a mesma fussanga manteigueira e lambedora. Toda a gente diz aquilo que julga que os eleitores querem ouvir: há piscadelas de olho obscenas, acenozinhos, cafunés, carícias equívocas. Figuras…
     O que se passa com o jogo da bola, e com as circunstâncias dele é particularmente deprimente. Os políticos lisonjeiam descaradamente os patrões do futebol, colam-se a eles, dão o dito por não dito, mostram-se perfeitamente incapazes de defender um princípio, de aplicar uma norma, quando pressentem massas ululantes a agitar galhardetes e com intenções de voto mal colocadas.     Qualquer dia o Conselho de Ministro reúne nos estádios, como os outros no Hipódromo… Desde que ouvi uma criatura, de cara afogueada pelo êxtase, berrar “ababaluba!”, “ababaluba!” e a cantar com intuitos insultuosos, “A Mula da Cooperativa”, fiquei por tudo. Acho mesmo que esta ainda á melhor que a da porca a dançar no arame…
     O que se vai passando com grande parte da comunicação social é sinistro. Toda a gente quer é vender. Os noticiários televisivos agridem os cidadãos desprevenidos com aquela bodega dos “fait-divers” e o sensacionalismo próprio da imprensa latrinária. Todos andam a pesquisar o que o pagode quer para vender isso ao pagode. Afinfam-lhe despudoradamente com a porcaria das telenovelas. Interrompem filmes de autor com catervas de reclames. Não há cá culturas, nem literaturas, nem tentativas de ficção nacional, nem nada. Os mandadores são os anunciantes e as televisões uma espécie de fábricas de reflexos condicionados.
     Depois vêm dizer, com toda a candura que isto é a agressividade comercial, que é a concorrência, que há que segurar o pagode, que tem aqueles gostos. Eu gostaria de lembrar que o vocábulo “agressividade” tem a mesma raiz de “agressão”e que a “agressão”, ao contrário do que algumas almas ingénuas possam pensar, é um substantivo com uma forte carga pejorativa. É coisa que não se faz, adversa à sã convivência social e às boas maneiras.
     Aliás, isso da concorrência é de grande excelência no negócio dos sabonetes, mas não está provado que seja conveniente a outros respeitos. Não vos soa mal, falar-se em “competição entre escritores”, como eu já ouvi?
     Aqui há tempos, num festival de cinema, caiu do céu um jovem diplomata estrangeiro que destoava um bocadinho dos circunstantes, quer pelo atavio, quer pelo excesso de à-vontade, quer por uma maneira muito peculiar de ver cinema. Em dada altura, numa daquelas ocasiões de alto significado cultural que consiste em ir bebendo uns copos, no bar, enquanto, lá dentro, as fitas vão correndo, o jovem tomou a palavra e causou embaraços: “Isto agora, a sério: há que tirar o meu chapéu aos filmes do Rambo. Vocês já viram os milhões de milhões que aquilo dá ?”.
     Fez-se um silêncio incomodado, houve quem preferisse sair e dar uma espreitadela contrafeita ao filme em exibição, houve quem fixasse com minúcia os restos do gelo no fundo do copo, até que um barbaças, muito timidamente, respondeu: “Olhe sabe, para ser franco, não acho lá grande espingarda. Dizem que a droga rende mais.” Talvez achem anedota, aliás verdadeira, um bocado excessiva, sugerindo equiparações abusivas entre uma rapaziada entusiástica que quer é ganhar dinheiro, mas lícito, e os outros. É claro que é excessiva. Eu pretendo tirar um efeito com ela. Não é assim que se faz?
     Há limites, há termos. Existem certas realidades humanas a que não se aplicam os critérios do comércio, nem as técnicas das relações públicas. Nem tudo o que os homens produzem é um produto; nem tudo o que é destituído de valor económico é para deitar para o lixo. Não me parece lícito medir um livro, um filme, uma peça de teatro, mesmo um jornal, pelos resultados económicos ou, o que acaba por dar na mesma, pelos gostos imediatos e pelos impulsos aquisitivos das massas.
     Custa-me a perceber que um escritor, ao escrever um livro, tenha a preocupação de se entender mais com o gosto dos leitores, do que consigo próprio. Dir-me-ão que, lá fora, os editores dão conselhos aos autores, e impõem, até, cortes impiedosos nas obras. Pois, e também publicam condensações dos clássicos. Já vi uma edição da “Guerra e Paz” reduzida a um único volume e confessadamente expurgada, em prefácio muito descarado de “tudo aquilo que não interessa ao leitor moderno”.
     Estou a pensar no que seria de “Moby Dick” se tivesse passado por um destes editores, amantes da tesoura… Alguém quer isso aqui?
     A mania do economicismo pode privar-nos de bens culturais que não têm preço. Está a tornar-se numa espécie de fundamentalismo religioso e sectário, a sobrepor-se a todas as referências de princípio, a destruir defesas culturais e a facilitar a progressão de ameaças tão sinistras que ainda não me atrevo a nomeá-las.
     Francamente, detesto as jeremiadas e anda sempre comigo um diabinho que ri das grandes frases, dos gestos grandiosos e dos semblantes sisudos. Mas olhem que os tempos estão maus. Perigosos. Se aparecer por aí algum Demóstenes, é ouvi-lo com atenção, ainda que ele seja gago; e se viesse a ser preciso um dia proferir umas “Filípicas”, muito a sério, era bom que os auditórios não estivessem viciados nas anedotas.
     O Hitler dizia, no “Mein Kampf”, se não estou em erro, que a propaganda política deve descer sempre ao nível dos mais estúpidos. Acho que existe um dever elementar de quem tem o privilégio de escrever, de filmar, de influenciar, por qualquer forma, um público, e que é de nunca facilitar a nivelação por essa rasa.
     Dar ao pagode o que o pagode gosta, pode resultar, qualquer dia, em facturas de preço muito alto, pagas não com dinheiro, mas com a liberdade e com o sangue.
     Falei no Demóstenes e no Filipe da Macedónia. Calhou… Pensando, bem, toda a História dos homens tem sido um pavor.
     Como eu gostaria de estar enganado sobre isto tudo…


Autor:    Mário de Carvalho (escritor)
Fonte:    in LEITURAS Público, 11 de Dezembro 1992 – pág. 7       

   

1 comentário:

  1. Comentário que recebi por e-mail...

    "É verdade, Zézinha, há textos cuja actualidade é tão grande, que até assusta!
    Não conhecia este do Mário de Carvalho... mas é paradigmático...
    Como alguns textos do Eça de Queiroz, ou aquele soneto do José Régio, que costumam circular pelos correios electrónicos...
    Enfim, vamos "brincando às democracias" e valorizando os "jogos de poder", como convém, para que pareça que , pelo menos, "mudam as moscas"!
    Sim, porque nem essas mudam!
    Vale-nos a consciência cívica de cada um de nós, dos que a temos - porque essa, ainda não nos pode ser arrancada!
    BEIJO GRANDE,
    Manela"

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