terça-feira, 6 de março de 2012

Crónica de António Lobo Antunes







   Quero ser filho da puta


         UM CRÍTICO teatral francês dizia que uma peça era má quando lhe começava a doer o rabo. Qualquer julgamento deste género tem o defeito de ser um pouco rectroactivo e talvez lhe prefira a perspectiva do pianista Rubinstein, que afirmava nunca assistir ao concerto de um colega porque, no caso de ser ruim, perdia tempo e, no caso de ser bom, saia de lá furioso. Dos exemplos citados poder-se-á inferir estar a crítica directamente relacionada com as hemorróidas e o narcisismo? E a autocrítica? O pintor Bonnard visitava os museus com uma paleta escondida na pasta e sempre que o guarda se distraía retocava à pressa os seus quadros; torna-se difícil um escritor ir às livrarias  barbear  adjectivos nos exemplares da montra. O acto de julgar em arte é muito complexo: Nabokov só louvava escritores medíocres e reduzia Hemingway, Conrad e Faulkner  a mentecaptos, no que se parecia com o tio que diante de um Picasso, levantou ao tecto as mãos indignadas
        -  Melhor que isto fazia eu em cinco minutos.
        e a minha porteira tem na sala, no espaço que os bambis de louça e as bonecas deixam livre, o Cristo de Velasquez num calendário-reclame  de uma oficina de bate-chapas pelo motivo irrespondível
        -  Que até parece que vai sair da parede a conversar com a gente, coitadinho
        critério tão seguro que se aplica aos caniches de quem os donos afirmam que só lhes falta falar.
        Não me preocupa que a um crítico lhe falte falar: preocupa-me que lhe falte ouvir. Um quadro, um filme, um livro servem para a gente aproximar a orelha e escutar. E se por acaso o quadro, o filme e o livro forem bons, escutamos tanto que não há espaço para palavras nossas. As únicas possíveis são as do caseiro a quem um coleccionador de que não me lembra agora o nome mostrou uma estatueta preciosa. O homem ficou a olhá-la que tempos, assombrado, girando a boina na mão, até soltar uma palmada imensa na coxa
        -  Ai o grande filho da puta
        que constitui no meu entender o melhor elogio que se pode fazer a um artista. Uma das pessoas com o gosto mais seguro que conheço é o meu pai: em vez de impingir teorias sobre os seus autores preferidos, lia-os em voz alta para os filhos
        ( - Reparem)
        sem os limitar nem os engrandecer: apenas mostrando-os, apenas ensinando-nos a reparar, não com palavras suas mas com as palavras deles. No fim fechava o livro, fazia-se um silêncio quieto, e quando o silêncio com o
        -  Ai o grande filho da puta
        lá dentro acabava, eu tinha a certeza de ter tocado naquela alegria para sempre do verso de Keats.
        Para mim, um bom crítico é assim: alguém que não limita a liberdade de apreciar (ou não apreciar) com o imperativo peso horrível do seu gosto pessoal em cima da minha cabeça, porque desse modo corremos o risco, como dizia Wilde, de os críticos serem ilegíveis e os autores não serem lidos. Talvez que nada disto seja muito importante: lembro-me de uma ocasião, há anos e anos, ter ido com Jorge Amado a casa de um escritor, onde só estavam escritores, só se falava de escritores e de livros, e ninguém tinha coragem de ir embora pela certeza de que ficariam a falar mal nas suas costas. Ao fim de um bocado, o velho levantou-se e pegou-me no braço:
        -  Vamos embora, miúdo. A literatura é como o amor: a gente faz, não fala.
        Acho que não aprendi muito com os romances de Jorge Amado (os romances também não são para se aprender seja o que for), mas aprendi bastante com a sua atitude: o suficiente para ficar a saber da intimidade do acto do amor e do acto da literatura, o suficiente, pelo menos, para não me ralar se falarem mal nas minhas costas. E há sempre a esperança, não é, de que alguém ao acabar de me ler bata uma palmada imensa na coxa
        - Ai  o grande filho da puta
        e durante cinco minutos garanto que fico regalado.

Fonte :   Público Magazine, 24 de Setembro de 1995.

1 comentário:

  1. Ao publicar esta Crónica, que considero uma relíquia, pretendo homenagear como tenho feito ao longo da Sua carreira literária, o Grande Escritor António Lobo Antunas e demonstrar, que até nas palavras que utiliza e denotam de há muito a sua irreverência, são filigranas donde brota toda a Sua ternura por aqueles que só sabem manifestar a sua admiração pelo belo dessa forma.

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