... COM JOSÉ CARDOSO PIRES
Pois é, meu velho, foste sem me dizer nada. Ficaste para aí a dormir ... sempre a dormir... até chegar ao sítio onde jamais se acorda. Nunca mais disseste: - Então meu rapaz! Trazias, quase sempre, os olhos cheios de mar e, muitas vezes, secaste os meus nas tuas palavras quando eles estavam cheios de lágrimas. Por acaso não viste, por aí, a barca do Gil? Não sei se ela ainda está em condições de navegar.
Há barcas que são eternas. A barca do Gil eternizou-se nas palavras; no outro lado das margens do tempo; na denúncia do mal para transportar o bem; nas últimas velas de navegar pelo céu.
Pois é, José amigo: - Esta noite sonhei que Mestre Gil te tinha dado uma barca. Uma daquelas que Deus lhe dera outrora para levar as almas. Há muito que as barcas chegavam da Terra quase vazias; as dos adultos... que para os inocentes, elas não chegavam. As dos inocentes tinham asas; não precisavam de velas; erguiam-se no ar pelas correntes quentes, até aos pés de Deus. Depois, com a barca que te dera Gil Vicente, vieste à Terra muitas vezes... Duma delas disseste-me: - Não queres vir?
Acordei precisamente quando ia a entrar na barca. - Não querias mais nada, perguntei-me! E ali fiquei pensando... ali, no sofá de molas partidas onde as viagens dormitam e saltam para a escrita, com as letras a ferverem do lado de cá do sonho; aquele lado que já todos conhecem; o único com possibilidade de descrever o outro, o lado das profundezas, o lugar do regresso a Gil Vicente onde os amigos se vão perdendo pelas cinzas da saudade e, de vez em quando, voltam à terra pela memória no nevoeiro das tardes ou nas noites de insónia.
Há pedaços de tempo para fazer o Tempo; aquele cujos segundos nos leva à eternidade; a centelha de pó a reluzir no Sol; um retalho da alma no mais ou no menos infinito... E para além? Sim!, para além do Infinito?
Ficam na história as lembranças impressas nas entrelinhas dos livros e as conjunturas dos homens naquilo que talvez fosse...
Desculpa, Cardoso Pires! Mas não me posso esquecer daquele dia, ou antes, quase noite, quando, numa visita ao Castelo de S. Jorge, me disseste: - Mestre Gil, menino! Tens nele as "memórias da tua democracia": a minha democracia nas palavras verticais nem sempre possível, num mundo de homens onde a aldrabice, a vigarice e a falta de responsabilidade imperam. Saramago ia receber um prémio da Associação Portuguesa de Escritores. Quase no fim viemos embora. As estrelas, dependuradas no veludo da noite, faziam caretas de cores, brincando com o infinito; uma brisa levemente fresca, acordava figuras com oitocentos anos de história; figuras de nevoeiro e lendas que o tempo, em grande parte dos casos, tornou realidade... a nossa realidade. Separei-me de ti, lá para as bandas da Sé. Quase não falámos. O silêncio tinha -nos dito tudo!
Enfim! Agora que passaste para além do "Túnel"; agora que esqueceste os Companheiros de outrora como fizeras à matemática para seguires o Mar; agora que, com certeza, já encontraste Stº Agostinho e lhe pediste para escutar a tua nova obra; agora onde não há praia nem cães e as baladas são celestes; agora onde o grasnar dos corvos não acontece e os heróis não rendem; agora... vem-me dizer, pela madrugada, ao meu ouvido esquerdo que ainda ouve, porque é que os homens são assim!
Fonte : - Artes & Artes, jornal de estudos, artes e letras nº 16 de
Janeiro de 1999, crónica do Escritor ULISSES DUARTE.
O Poeta faria hoje, 11 de Março de 2012, oitenta e nove anos...
há cinquenta, que a "Menina de Olhar Triste", vê partir a "barca" do Gil.
O Poeta ULISSES DUARTE, foi colaborador, do Jornal ARTES & ARTES, jornal de estudos, artes e letras, desde o nº 1 de Junho de 1997, onde mantinha uma Crónica e uma Gazetilha (Furibundo), escrevendo sempre com uma ironia dorida, sendo esta a "sua suprema inteligência" (como dizia António Gedeão). Esteja onde estiver, curvo-me perante ELE.
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