Nota Introdutória:
Para tornar a vida inteligível fundada em valores, todo o saber é um conhecimento, espiritual tornando o próprio homem infinitamente poderoso. Assim esta ignota tem a ousadia de postar neste modesto blogue, onde impera a sua "magia reinante" a capa do livro de poesia - .DO.CORPO.AO.ROSTO. - do poeta Julião Bernardes, seguida do Prefácio e Apresentação Pública de José Fernandes Tavares, considerando-os aquilo a que a Teosofia chama Mestres de Sabedoria em perfeita simbiose, ajudando-nos a dar sentido à vida!
Prefácio
DA PUREZA MATRICIAL DO MUNDO: UMA LEITURA DE DO CORPO AO ROSTO DE JULIÃO BERNARDES
Se excluirmos a perspectiva que nos é dada pelo conhecimento científico, também ela escassa devido ao peso da objectividade e do rigor, muito pouco se sabe sobre verdadeira a natureza das coisas, a não ser aquilo que os sentidos nos dizem. O conflito entre a observação objectiva e os dados dos sentidos constitui a mais antiga oposição no seio da inteligência. Este conflito, tão ancestral quanto o universo, tem permitido a consolidação daquela a que podemos chamar a «razão poética», o lugar decisivo que orienta a humanidade a encontrar a paz que a verdade, em si mesma, transporta. De facto, não nos será difícil considerar que é na essência da paz que a verdade se encontra, pois é nela que se consubstancia o grande desafio dos filósofos. A paz, essa eterna utopia, é a substância de que a arte se serve para cumprir o seu destino. Trata-se, porém, de um destino que tem tanto de obscuro como de glorioso. A glória dos poetas radica-se na obscuridade: o poeta é o sujeito invisível que circula anónimo por entre a populaça ignara, sedenta de comida e de bebida. O poeta alimenta-se das palavras e bebe-as, no torpor dos dias sem sentido; nos dias em que o único sentido é a palavra procurada para que o espírito se unifique. Só assim poderá vencer o trágico (e não menos obscuro) obstáculo do corpo. O livro de Julião Bernardes Do Corpo ao Rosto é disto que nos fala: o confronto, sempre aterrador e inquietante, entre a iluminação da palavra e a estiolação do espírito devido às contigências do mundo. Há neste livro a questionação de um certo tipo de humanidade, sem dúvida uma das funções da arte poética, questionação que se impõe devido à evidência da perda: a civilização tecnológica atingiu o corolário da perda: perda dos valores humanos (e isto já é um lugar comum) e perda, sobretudo, da pureza original do mundo, o confronto com uma ordem natural que tende a diluir-se e a extinguir-se devido à abusiva vontade dos homens. O homem contemporâneo vive num reino confuso, onde o virtual se confunde com o real. Já não se sabe onde começa o real porque a verdade já não se procura: deixou de ser tarefa prioritária. Neste sentido, jamais a humanidade poderá encontrar a paz; ainda não abandonámos as grilhetas com que nos prenderam à caverna de Platão. Apenas os poetas (talvez mais do que os filósofos) se libertaram da escravidão e enfrentaram a luz do mundo sem medo de cegar; chega-lhes a poderosa iluminação interior e, por esse motivo, se libertaram. Foi uma conquista de séculos, conquista que ainda está longe de ficar concluída. O homem contemporâneo continua a ser escravo de si mesmo e esse é o lado mais trágico da condição e da miséria humanas. Todo o homem é uma criatura miserável, independentemente da sua condição económica. A sua miséria é maior do que a de uma abelha, condenada a viver apenas alguns meses: para ela, a morte é uma necessidade e não um fardo doloroso. Mas, enquanto vive, vive gloriosamente, pois a sua precária existência cumpre-se na verdade. O homem está condenado ao peso da razão: por ela morre, por ela pode matar, por ela pretende conquistar uma felicidade que jamais poderá atingir devido à profunda miséria que o habita. Talvez por esse motivo o suicídio seja um imperativo moral. A morte de um homem raramente é assumida como um regresso à raiz matricial do mundo: ela é encarada como um facto obsceno, um atentado à inteligência. A humanidade, ao longo do curso dos séculos, sempre teve o defeito de transportar a eternidade dentro da cabeça. Justifica-se, assim, a grande ilusão de viver, essa mesma ilusão que confere a dimensão trágica à própria vida. Transportar a vida como um fardo que se ama intensamente: eis uma parte substancial da essência do humano. Cumpre-se a humanidade neste jogo (não menos trágico) de paradoxos e de contradições. No paradoxo radica-se uma parte da verdade procurada; ou talvez a verdade da sua inteireza. O paradoxo não é um sinal de fragilidade ou de inconsistência: representa a riqueza inerente à poderosa virtualidade do carácter humano. É nele que se afirma o livro de Julião Bernardes: entre o corpo e o rosto, ou seja, o espaço misterioso onde o homem se revela. Este livro funciona como uma peregrinação entre os pontos fulcrais por onde o humano se movimenta no seu trágico deambular: o corpo, a transparência, o sono, a morte e o próprio rosto. Embora a temática já não seja inteiramente nova na poesia de Julião Bernardes, podemos considerar este livro uma obra de referência no contexto da produção poética do autor.
Fala-nos o sujeito poético, na introdução deste livro, nos humores desconhecidos da Natureza. Esse é o lado que homem nenhum poderá controlar, se exceptuarmos um tipo de razão, ou de racionalidade, desconhecida. Cada homem é um corpo autónomo em movimento: trata-se de uma liberdade controlada. Eis o corpo, o grande Doutor Destino da lenda. O sujeito poético vislumbra-lhe os misteriosos «abismos da água» que se assemelham a uma cascata cuja fonte é inesgotável. Mas o paradoxo em breve se afirma no imaginário poético do sujeito: «cada corpo é um espinho a despertar / pesadelos»: eis a revelação do peso do mundo. Mas o corpo recupera também a secreta inocência que o homem experimentou na aurora desse mesmo mundo. Nesta perspectiva, o corpo é visto pelo sujeito como uma cidade com artérias na qual se consuma o fruto do sangue com a alma: o sonho e o conhecimento, esse mesmo conhecimento revelador da «inocência de ser livre na nudez inicial». É também por este motivo que o sujeito poético nos diz que a sua natureza é irmã da própria natureza: a sua continuidade é quase perfeita. Tal como a natureza se transforma, também o corpo se altera e modifica. Diz-nos o sujeito, numa belíssima metáfora, que o corpo é uma nave em viagem. O corpo possui a capacidade anímica de refazer o mundo, ou a vida, a partir da própria morte.
Mas não é apenas no corpo que se cumpre a natureza humana. É no espaço invisível do entendimento que a transparência se afirma: «o entendimento / dá cor e forma e transparência / a tudo o que vemos ou imaginamos». É através do entendimento, o que será o mesmo que dizer através do poder da razão, que melhor podemos comunicar com os outros, justamente aqueles que navegam connosco no mesmo barco e nas mesmas águas. Eis que o sujeito poético nos diz ser fundamental «saber que há no outro as mesmas montanhas / por vencer». A transparência «entrega nas nossa mãos a partitura / onde o mundo nos toca». Esta inspirada imagem remete-nos para a ideia que o homem é o maestro do seu próprio destino: este cumpre-se sem mácula se soubermos tocar os instrumentos certos, e esses só a sabedoria no-los poderá dar a conhecer. Mas há quem não saiba ler as partituras do destino, e esses serão devorados pelo tempo, pelo desperdício e pela solidão; neles, cumprem-se «séculos de desperdício e de abandono» - eis que a humanidade se reconhece a si mesma nessa decadência, pois a história é a melhor conselheira do entendimento: «por dentro de tudo, a transparência fecunda / subterrâneas e inesgotáveis nascentes». Há, no próprio entendimento humano, a sede do conhecimento, uma sede que transparece no olhar: «a transparência é fértil», pois, de acordo com o sujeito poético, é a própria transparência que regenera o tempo.
Há ainda a questão do sono, matéria complexa que se alia ao grande mistério humano. Como se justifica essa «morte» em vida, se a vida, em si mesma é tão curta? O sujeito poético justifica esse mistério deste modo: «O sono é vida e morte [...] / no sono a vida arde». Durante o sono, a realidade transforma-se em fumo e tudo se desfaz «matéria a transbordar». No sono, a própria língua é um mapa onde «correm rios». São os rios do pensamento, esses sulcos misteriosos que também se espraiam pela planície das mãos. O sono permite que a noite possa glorificar o dia, desvendando todos os segredos da consciência. Por esse motivo, também o sono «eleva o corpo à consciência». O sono «devora o corpo e empurra-nos para dentro do medo»: a clara alusão à infância profunda. Também o sono reclama a sua transparência: «o sono dulcifica a transparência / na solidão do sal». São imagens lapidares que permitem perpetuar a memória poética do autor.
A correlação entre o sono e a morte faz com esta também alimente o imaginário poético de Julião Bernardes Diz-nos o sujeito poético «há um tempo que é só nosso»: designa, deste modo J a exclusividade temporal do indivíduo enquanto ser situado. A morte é o «grande sono reparador» que dá «todas as respostas».
Surge, por fim, o rosto: «o rosto circunscreve-se nos dias». O rosto permite ao homem a abertura para o mundo, para o resplendor da natureza: «cada rosto pertence ao Universo». Por esse motivo, o rosto confere aos homens a sua diferença, determinando-lhes o carácter: «o rosto é moldado nos gestos». O rosto mantém-se igual a si mesmo, apesar das mazelas do tempo. Por isso «o rosto nada espera, apenas se revê no que não vê». O rosto «regressa sempre a si - é o princípio». O rosto é a «raiz da transparência». Eis como o sujeito poético de Julião Bernardes liga os cinco elementos enunciados (corpo, transparência, sono, morte e rosto) num corpo único, um corpo singular formado por conjuntos de dez poemas. Nessa transparência onde o corpo se impõe, eis aqui o retrato de uma humanidade quase desconhecida, porque despojada de tudo. Trata-se de uma peregrinação à pureza das coisas, tal como elas se apresentaram ao primeiro homem que sulcou o planeta. Independentemente de todas as qualidades que a poesia de Julião Bernardes nos apresente (e são muitas), este livro possui pelo menos um mérito: a capacidade de transportar o leitor à aurora do mundo de modo a poder contemplá-lo com o olhar virginal do primeiro homem.
José Fernando Tavares
Apresentação
Pública
DO CORPO AO ROSTO DE
JULIÃO BERNARDES: UM VIAGEM INICIÁTICA PELA METAFÍSICA DO CORPO
José Fernando
Tavares
Apetece-me fazer um trocadilho a propósito do livro que Julião
Bernardes intitulou Do Corpo ao Rosto e que hoje se apresenta:* trata-se
de um pequeno livro na sua dimensão física, mas não de um livro pequeno na sua
intencionalidade. Um dos paradoxos do acto poético reside aqui: a densidade do
Verbo ultrapassa a aparente pequenez, ou fugacidade, da palavra, pois esta não
se reduz à sua significação. Justifica-se esta aporia perante o tema que
absorve este livro: este tema resume-se a uma palavra: o homem. É o homem na
sua inteireza universal, mas também na sua natural fragilidade, que o leitor
aqui encontra. É, por um lado, o homem múltiplo que atravessa a história e a
contingência dos séculos e é, por outro, o homem uno que se confunde com a
natureza e morre com ela. Basta observarmos a estrutura deste livro para nos
apercebermos da existência de um percurso iniciático em que a vida e a morte se
confundem numa impressionante revelação: se o leitor estiver atento à poética
aqui presente, verificará a presença de um ciclo em que o início e o fim se
aproximam e se questionam pela sua gritante proximidade. Diz-nos o sujeito poético:
«Como podemos querer saber tanto do fim / e descuramos o incêndio da origem?».
E ainda: «Qual estará mais perto?: a origem ou o fim?».
Permitimo-nos supor que foi a consciência
desta proximidade entre o princípio e o fim das coisas que levou Dante a
construir a sua Comédia divina a partir da idealização bíblica dos círculos do
Universo. O percurso da alma entre o inferno castigador, o purgatório redentor
e o paraíso purificador, mais do que uma comédia abstracta, mais do que uma
concepção doutrinária, a epopeia dantesca é o resultado da interiorização de um
caminho essencial para o conhecimento do homem e da sua complexidade. Antes de
ser o reflexo da epopeia clássica, a obra dantesca não deixa de ser, sobretudo,
uma «obra filosofal», para utilizarmos uma expressão grata ao medievalismo
alquímico do seu tempo. Se o humanismo engrandece a obra dantesca, é esse mesmo
humanismo (embora sob múltiplas formas) que também iremos encontrar na história
da poesia ocidental até ao momento presente.
Tal como na epopeia dantesca, encontramos
no livro de Julião Bernardes a ideia bastante clara de um percurso subterrâneo
empreendido pelo homem contemporâneo, percurso tão clarividente quanto
enigmático que ocorre entre a materialidade do corpo e a sua compleição metafísica.
Eis que nos encontramos, assim, perante outro aspecto paradoxal do acto
poético: a enunciação da matéria corpórea perante a inexorabilidade metafísica.
A fragilidade contingente do corpo está sujeita aos humores da paixão, os quais
regulam e clarificam a sensibilidade criadora, aspecto essencial ao espírito
humano. Diríamos que esta íntima relação entre a matéria corpórea e a sua
compleição metafísica não se circunscreve aos tratados filosóficos, tais como
aqueles que abordam os princípios do entendimento humano, ou a configuração
abstracta das paixões da alma. Tal relação estende-se ao próprio acto poético,
pois não poderíamos compreendê-lo e interiorizá-lo fora dos limites da
perspectiva metafísica. A epopeia dantesca, tal como todas as outras grandes
epopeias da história literária, terá de ser compreendida à luz da metafísica
que nela se vislumbra, independentemente da sua edificação linguística e
filológica. O mesmo se pode dizer da epopeia camoniana, cuja espiritualidade
ultrapassa a complexidade, quer da sua linguagem quer da sua estrutura formal.
Para lá dessa evidência, a principal preocupação dos estudos literários
circunscreve-se ao historicismo gramatical e ao formalismo poético, aspectos
que não bastam à compreensão integral da Obra.
Abstraindo-nos do pragmatismo filológico,
cumpre-nos considerar o conteúdo «filosofal», para regressarmos a uma expressão
da antiga alquimia. Porque é a alquimia do Verbo que importa considerar,
qualidade particularmente explícita no conteúdo poético deste livro de Julião
Bernardes, no qual se pressupõe a presença do enigma: o grande enigma do homem
que só o acto poético poderá revelar e compreender. Trata-se, assim, de um
livro «filosofal» no sentido de que possui uma parte da chave que pode conduzir
o leitor à revelação da sua angústia interior, ou à compreensão da
circunstância, sempre enigmática, que envolve a humanidade num tempo em que a
esperança já não é um desafio vivificador, mas apenas a sombra de um destino
sem contornos definidos.
Embora estejamos longe do tempo da
epopeia clássica, ou mesmo classicizante, resta ao criador literário escrever a
sua própria epopeia, reinventando-a e dando-lhe a forma que é exigida pelo seu
tempo, pois a epopeia, enquanto género poético reinventado no período quinhentista,
é o resultado de uma concepção estética saudosista porque se alimenta do génio
da Antiguidade. A epopeia de Julião Bernardes (se assim podemos chamar ao
conteúdo poético deste livro), embora há muito disseminada pelos seus livros
anteriores, afigura-se-nos aqui particularmente reveladora, sobretudo pela sua
ordenação temática. Esse percurso iniciático, tal como acontece na viagem de
Dante, bem como na viagem iniciática de Camões a uma Índia misteriosa,
compreende os estádios «do corpo»; «da transparência»; «do sono»; «da morte»;
e, por fim, «do rosto». O uso do pronome (também de uma reminiscência da
prosódia latina clássica) enuncia a intencionalidade «filosofal» de cada
estádio, ou momento, da reflexão poética aqui exposta.
São esses os cinco estádios que
compreendem esta epopeia pessoal; cinco cantos que exaltam o mistério da vida,
tal como acontece no epos clássico, não obstante o livro de Julião Bernardes não se
centrar num acontecimento histórico específico. De resto, é isto que acontece
no epos que está reservado à poesia
contemporânea: a história das nações, tal como os poetas a vêem, deslocou o seu
campo de intensidade para o homem individual, o que, de alguma maneira, conduz
à valorização do campo espiritual da humanidade, característica que a história
política geralmente não contempla devido à cegueira atávica do homem político.
Assim, o epos e o mythos (este último respeitante ao maravilhoso)
que estão presentes no livro de Julião Bernardes possuem a sua matriz no espaço
consagrado ao corpo e é por esse motivo que já nos referimos a uma «raiz
matricial do mundo» a propósito desta mesma obra.
No primeiro estádio, ou canto, consagrado
ao corpo, depara-se o leitor com o espaço geográfico no qual ocorrem os
restantes momentos desse percurso iniciático. O corpo é o elemento catalizador
que irá unificar os diferentes estádios, muito à semelhança do Empíreo de
Dante, ou do Atlântico de Camões, espaço corpóreo a partir do qual se determina
a dimensão maravilhosa e fantástica da viagem. Para lá da dimensão corpórea
inicial, trata-se de uma viagem interior justamente porque apela ao
maravilhoso, aspecto que é próprio do inconsciente, o elemento criador do Verbo
e sua significação. Há, neste livro, uma ideia-chave: aquela que nos fala na
importância da palavra como matéria do espírito. É isso que significa a
«palavra relâmpago: «Cada corpo é igual a outro corpo [...] / a diferença é
feita de perfumes, / sombras e claridades que penetram / os ouvidos atentos às
insónias, / às palavras relâmpago teimando / iluminar os tímpanos». A palavra
desperta a emoção e exalta a consciência, provocando a dor. Será por isso que o
sujeito poético compara o corpo a um espinho: «Cada corpo é um espinho a
despertar / pesadelos, no nada dos instantes, / entre dores e dádivas de luz».
É nesta inebriante contradição que o corpo se situa: entre a «[...] cegueira da certeza [...]» e a «[...] lucidez
da dúvida / num sopro de desejos e memórias». Vislumbra-se aqui a consciência
de que o corpo é o espaço do excesso, pois é nele que se circunscreve a
perspectiva do mundo. O sujeito poético exala este excesso através do princípio
da Vontade «Ri-se das intempéries se a vontade / o inquieta e com ele pela mão
/ o arrasta às entranhas da alegria / de banquetes de fome e de loucura, /
naquela solidão a devorar-se / em que tudo o que a rodeia / e a embriagar-se,
deleitada, / no néctar de promessas e ausências / com paisagens de mel». É
através da vontade que o homem utiliza o corpo como veículo que o transporta
para esse imaginário da origem onde pode reencontrar a inocência perdida: «O
corpo sai de si e recupera / a secreta inocência inicial [...]». O excesso da
vontade não impede a pragmática do corpo, pois é através dele que a memória
recupera «[...] o que nos acontece / a todos pelas ruas, e assiste / aos vultos
confundindo-se nas noites / às sombras das esquinas / e com eles comunga da esperança
/ e do peso do mundo». O corpo é «uma floresta de palavras» pois descodifica o
nome das coisas e «tece a transparência» das cores. Sacia na água a «fome do
sentir, / ao recolher do sal conhecimento». O corpo «ergue o tempo em sonho» e
«conjuga o sangue com a alma» O corpo assinala a sua presença através da
ausência ao «comandar o coração» sem se manifestar de forma explícita: «O
segredo do corpo está aí /nessa presença ausente a comandar / o próprio coração
[...] / como se um mar de luz nele vibrasse [...]». É nesta dimensão prática do
corpo que o sujeito poético identifica o princípio da libertação: «a inocência
de ser livre / na nudez inicial». Desliza pelo tempo «[correndo] como um rio».
Por ele, as palavras viajam como o vento, o que permite que ele se confunda com
a natureza e anunciando o seu telurismo panteísta: «A sua natureza é irmã / da
própria natureza [...]». Está o leitor, assim, no interior uma «nave em
[perpétua] viagem, uma nave que desliza pelo mesmo «éter» percorrido pelos
deuses da mitologia clássica. Enfim, o corpo é também o receptáculo do amor: «É
pelo amor que o corpo purifica / a forma e o sangue», gerando, dessa maneira, o
grande equilíbrio do mundo, até mesmo quando se sujeita à «aparente e breve
morte».
Eis que se impõe o estádio da
transparência, esse «sopro divino» em que «tudo é movimento». É através do
movimento perpétuo que as vogais de todos os nomes se transfiguram, permitindo
o seu «inaudível rumor». É neste estádio que se impõe a já citada questionação
fundamental: «Qual estará mais perto?; a origem ou o fim?». Trata-se de uma
questão insolúvel dado o deslumbramento da palavra inesperada: «Ao pronunciar
as palavras dar-lhes vida / seja num murmúrio de luar / seja num atirado grito
contra o vento». A transparência teima em tomar forma de modo a revelar a
verdade do mundo: «Só assim a verdade do mundo coincide / com as aspirações das
pálpebras, quando estas / tacteiam, nas palavras, uma invenção segura / do
presente». A transparência, através do seu aparente silêncio, «é a resposta
definitiva da ausência»; ela entrega «nas nossas mãos a partitura / onde o
mundo nos toca», erguendo o sonho e o conhecimento, combatendo o abandono e o
desperdício dos séculos. Assim, a «transparência fecunda subterrâneas e
inesgotáveis nascentes», «acende lâmpadas nas veias» permitindo que a sombra
seja «o reflexo da luz». É através do estádio da transparência que a dimensão
poética ultrapassa a substância do real.
Esta última aporia prepara-nos para
penetrar no estádio do sono, momento fundamental desta viagem iniciática. É no
estádio do sono que a poética de Julião Bernardes nos remete para os mistérios
de Elêusis através da epopsia, ou seja, a iniciação do leitor no enigma da noite. Porque
o sono é o paradigma da vida plena: «o sono é a vida e a morte. Ao dormires /
sua luz tuas trevas ilumina [...]». Assim, o estádio do sono permite ao homem
esquecer-se da sua condição de ser contingente perante as necessidades da
subsistência: «Fora do son(h)o abrimo-nos à boca, / à subsistência, / deixamos de escutar o labirinto / onde nos possuímos». No
sono repousa a essência da liberdade humana: «Na liberdade das mãos a liberdade
/ da boca, do corpo, de todos os sentidos [...]». Ou seja, o sono permite à
condição humana libertar-se do «imperceptível fardo» da vida. Assim, o sujeito
poético concebe a vivência das trevas como uma «dádiva final» à própria vida. O
sono permite elevar o corpo à consciência, organizando-o e preparando-o para o
despertar no esteio etéreo do próprio sono. E o sono é definido desta maneira:
«É um treino do medo de crescer / e, por entre as abelhas e as flores, / faz-se
de pedras / de montanhas / de armas / de feridas e sangue / amálgama dorida de
alegrias / a repetir imagens de ausências» Esta amálgama de imagens e sentidos
não impede a solidão, talvez a mais próxima semelhança com o despertar: «Em
repouso estás só, mas não o sabes, / e é a própria vida que comanda as cinzas
do cansaço [...]». O sono é um veículo para a criação. É a redenção do corpo,
pois é nos sonhos que se expiam os excessos e as faltas. Sendo uma forma de
redenção, é também um alimento para o medo. Esta circunstância permite ao sono
ser «a raiz da vida», pois a noite desvenda todos os segredos. O sono dá uma
forma à matéria, pois as mãos sentem de outra maneira. Dá-se a Comunhão com o
divino, pois «Só a noite acorda à realidade / da comunhão do sangue». É através
do sono que o homem se perde na noite para se reencontrar consigo mesmo. A
chave do sono reside nesta imagem de beleza: «O sono dulcifica a transparência
/ na solidão do sal», ou seja, o sono está para lá de todo o conhecimento.
Tal como na viagem dantesca, o percurso
também compreende os recessos da morte. E a morte está próxima da palavra, da
palavra poética na sua essência. Diz-nos o sujeito poético a este propósito:
«[a morte] se revê na palavra descoberta, / a que possui a essência e a pureza
/ que a iguala ao número da que todas designa», ou seja, a palavra. É depois de
abraçar o estádio da morte que a liberdade humana possui «a liberdade / de conhecer
o sol, / o que nas noites / se embriaga na dor [...]». A morte sobrepõe-se o
gelo ao fogo, daí a sua pureza: «Joga todos os jogos com quem quer / e não
vicia os dados, / parece ter prazer em os mostrar / na pureza da sua concepção
[...]». É por isso que «Por igual transporta culpados e inocentes». É um «beijo
de neve e de penumbra», «a parte incorpórea do corpo» Nela propaga-se «som
inimitável» de origem. É «Invisível e leve, imaterial, [...] / penetra na
escuridão do tempo». Possui «vários nomes» e detém «a chave do concreto». A
morte é «o lugar-passagem [...] / onde as sombras se juntam / e são iluminadas
pelo fulgor do Tempo / no âmago da vida». Na morte cumpre-se «o grande sono
[...] / reparador» da existência.
Eis-nos, enfim, chegados ao último estádio
da viagem, aquele que compreende o rosto e o seu mistério. O rosto pode ser
entendido como o elemento da ligação entre o corpo, a transparência, o sono e a
morte, as fases da iniciação ao universo interior de cada homem. É pelo rosto
que o homem dá o nome às coisas do mundo; é pelo rosto que um ser se distingue
de outro ser, a sua divina imposição perante o mundo. Para o sujeito poético,
«O rosto circunscreve-se / nos dias / com os olhos pla mão». O rosto «fortalece
os sentidos» no que se vê e, «de luzeiro em luzeiro / vai acender faúlhas / na
desordem do mundo». As rugas que nele se inscrevem são comparáveis a um
labirinto, aquele que personifica a própria vida. O corpo é o reflexo da alma,
pois também o rosto possui um coração, um coração universal: «Nunca deixes cair
o coração / do rosto; alimenta-o da cor / que lhe dá vida, junta-lhe as demais
/ e tens um coração universal [...]». Justifica-se, assim, a universalidade do
rosto, esse elemento do espírito que se encontra do lado de cá do espelho, porque
o rosto não se inventa: é uma imposição do espírito. O rosto é a alma das mãos,
«dando à água a pura limpidez de cada gota». O rosto serve-se da alma de modo a
auscultar o corpo até o tornar transparente. Trata-se da transparência que
aproxima o sono com a morte, «[...] [retendo] a linguagem na corrente do rio
[...]». O rosto «É da semente o símbolo e vive / com o nome nas mãos». O rosto
é a «raiz da transparência».
Chegamos, assim, ao final desta viagem
iniciática, a qual podemos comparar a uma epopeia cósmica pelos subterrâneos do
inconsciente. Não é por acaso que o rosto, na tradição clássica, está associado
à persona, à máscara, essa mesma máscara, ora
trágica ora cómica, que afivelamos ao rosto consoante a nossa circunstância.
Finda a viagem, resta-nos voltar ao seu início, o que será o mesmo que dizer,
voltar a cumprir a nossa condição contingente em paralelo com o nosso destino
transcendente. Missão eternamente inacabada como essa mirífica torre onde
repousa o universo da linguagem, a obscura essência de toda a poesia.
* Bernardes, Do Corpo ao
Rosto, Matosinhos, Versbrava, 2014. Texto lido na Casa das Beiras no dia 31 de Maio
de 2014, a propósito do lançamento do livro de Julião