Os Mortos
Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.
Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
de todos eles desprendendo-se de mim.
Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?
E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.
Autor: Manuel António Pina
in, Poesia, Saudade da Prosa, uma antologia pessoal